Ministério alemão da Justiça elaborou proposta de lei que autoriza novas constelações adotivas, como casais em união estável e famílias com duas mães. Mas projeto não prevê adoção por dois homens.Arranjos familiares dos mais diversos fazem parte do cotidiano alemão. Mas a lei do país teima em ficar atrasada em relação à “realidade social”, como definiu o ministro da Justiça, Marco Buschmann, membro do centrista Partido Liberal Democrático (FDP).

Com isso em vista, está nos planos do governo atualizar as leis sobre adoção e família. Buschmann encaminhou para membros do Judiciário nos estados um projeto de reforma, assim como convites para participarem de debates com o governo no fim de outubro.

Entre as mudanças propostas no texto, estão a possibilidade de parceiros em união estável adotarem juntos; que um membro de um casal oficialmente casado possa adotar individualmente; ou que uma criança possa ter duas mães em seu registro.

Como funciona hoje e o que deve mudar

O número dos desejosos de adotar na Alemanha é muito superior ao de crianças colocadas para adoção. De acordo com a atual legislação, adultos maiores de 25 anos podem adotar uma criança, contanto que preencham uma série de critérios: estabilidade da relação do casal, saúde física e mental, motivação para adotar, condições de vida e circunstâncias financeiras.

Indivíduos solteiros podem adotar, mas só em casos especiais – quando existe um relacionamento de longa data entre adulto e criança, por exemplo. Casais heterossexuais e do mesmo sexo, casados no papel ou solteiros, estão aptos para adotar, sob as seguintes condições:

casais casados só podem adotar legalmente uma criança em conjunto;
apenas um adulto de um casal que não é oficialmente casado pode se tornar o pai legal de uma criança adotada – o parceiro tem a opção de adotar a criança como enteada.

De acordo com a proposta do governo, será possível que:

os dois adultos numa união estável adotem juntos;
apenas um cônjuge num casamento se torne o pai legal de uma criança adotada.

A Associação das Famílias Adotivas e de Acolhimento (PFAD) da Alemanha, comemorou as mudanças propostas: “A realidade das famílias de hoje mostra que o casamento não promete permanência, como se supunha anteriormente na lei de adoção”, comentou Carmen Thiele, chefe do escritório da PFAD em Berlim.

Crianças poderão ter duas mães

Além das mudanças na lei de adoção para casais casados e solteiros, o projeto de reforma também estabelece que uma criança poderá ter duas mães desde o nascimento.

De acordo com a lei atual, a parceira da mulher que dá à luz num casal de lésbicas precisa apelar para a adoção de enteados. Esse longo processo legal, durante o qual se avalia a aptidão da mulher para adotar, vem sendo criticado há muito tempo.

A LSVD+ Queer Diversity Association, a maior organização de direitos civis LGBTQ+ da Alemanha, saudou o fato de o governo propor avanços com reformas há muito esperadas e prometidas.

“O incômodo das adoções de enteados para famílias com duas mães deve ser encerrado. Afinal, as crianças de famílias arco-íris têm direito a dois pais desde o nascimento, independentemente do gênero”, declarou Patrick Dörr, membro do conselho da LSVD+.

Lei alemã só prevê só um pai, e não deve mudar

De acordo com a atual lei de paternidade da Alemanha, contudo, não é legalmente possível uma criança ter dois pais: o pai legal é o pai biológico ou o parceiro da mãe que esteja num “relacionamento social-familiar” com a criança.

No caso de casais homoafetivos, um dos homens pode reconhecer a paternidade, mas não seu parceiro. A lei alemã só reconhece um pai, além da mãe biológica. Ele tem como opção apenas adoção de enteado. Isso não muda nas reformas propostas.

Essa questão específica foi contestada recentemente, quando o Tribunal Constitucional Federal em Karlsruhe decidiu, em abril de 2024, que os pais biológicos devem sempre ter a oportunidade de manter e exercer a responsabilidade parentalsobre seus filhos. Isso abre a possibilidade de reconhecimento de famílias multiparentais, em que haja dois pais e uma mãe.

No entanto, a decisão definiu pais biológicos como “um homem e uma mulher que conceberam a criança por meio de relações sexuais com seus gametas, se essa mulher posteriormente deu à luz a criança”. Portanto ela não se aplicaria a pais biológicos no caso de inseminação artificial. O tribunal não tornou a decisão vinculativa, deixando aos legisladores a decisão de como regulamentar a lei de paternidade até 30 de junho de 2025.

Sistemas jurídicos encaram a paternidade moderna

Por enquanto, o projeto de reforma elaborado pelo Ministério da Justiça enfatiza que alguns princípios legais básicos não serão alterados. Em primeiro lugar, a mulher que der à luz sempre será considerada a mãe, “sem que seu status legal seja contestável ou passível de acordo”. Em segundo lugar, “uma criança continuará a ter apenas dois pais legais”.

Enquanto isso, os sistemas jurídicos de todo o mundo estão lidando com mudanças nas configurações das famílias modernas, incluindo o aumento do poliamor.

No Brasil, não existem barreiras legais para que casais homoafetivos adotem crianças de forma conjunta. O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu uniões estáveis do tipo em 2011, e nova decisão em 2015 reforçou o direito à adoção. O processo é o mesmo que para um casal heteroafetivo.

Nos Estados Unidos, onde a adoção é em grande parte regida por leis estaduais, a Suprema Corte decidiu, em 2017, que ambos os cônjuges em casamentos homossexuais tinham o direito de ser listados como pais na certidão de nascimento. Apenas alguns estados, como a Califórnia, permitem que crianças tenham mais de dois pais legalmente reconhecidos.

No Canadá, várias decisões judiciais resultaram na admissão de mais de dois pais legais. Em 2021, por exemplo, a Suprema Corte da Colúmbia Britânica decidiu que todos os três membros de um trio poliamoroso deveriam ser registrados como pais de crianças que estejam criando juntos como uma família.

Famílias com mais de dois pais não são atualmente reconhecidas legalmente em nenhum país europeu. Um relatório do governo holandês de 2016 recomendou emendas na lei para reconhecer a multiparentalidade para até quatro pais e duas residências. No entanto, sucessivos governos discordaram sobre o assunto, e até o momento a lei não foi homologada.