10/06/2015 - 16:01
Quem já ouviu uma canção gravada por dois intérpretes sabe como uma leitura diferente pode transformar uma música. Um conceito parecido está na raiz do Projeto do Mapa Epigenômico, criado em 2008 pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), do governo dos Estados Unidos. A iniciativa, que conta com investimentos de US$ 240 milhões, pretende mapear até 2018 todo o epigenoma humano (o conjunto de processos e reações químicas que regulam nossa expressão genética), descobrindo como, onde e por que certas substâncias presentes no corpo interferem no genoma alterando a atuação dos genes.
Em fevereiro, o projeto apresentou seus primeiros resultados na revista Nature e em outras publicações científicas: a descoberta de um “manual de instruções” que esmiúça o funcionamento de 111 tipos de tecidos, relacionando-os a doenças como asma, câncer, distúrbios cardíacos e Alzheimer. O novo flanco de pesquisa é uma peça fundamental na “medicina de precisão”, mais personalizada, proposta pelo presidente americano Barack Obama.
Desde 2001 já se conhecem os cerca de 3 bilhões de “letras”, ou pares de bases nitrogenadas (adenina-timina, guanina-citosina), que compõem o DNA. Mas esse material não é “lido” sempre da mesma forma. Há nuances, como a ativação, a desativação ou a mudança no desempenho de determinados genes, que vão dar um desenvolvimento específico a cada corpo. Se, por exemplo, o genoma de um indivíduo possui DNA relacionado ao câncer, mas que é “anulado” por moléculas do epigenoma, a doença não se manifesta. Voltando ao exemplo da música, o epigenoma atua sobre o genoma “tal como anotações em uma partitura musical podem levar a diferentes interpretações da mesma sinfonia”, compara Manolis Kellis, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), autor sênior de um dos artigos publicados na Nature.
Tecido cerebral com manifestação de Alzheimer (pontos azuis): o mecanismo da doença já é mais bem compreendido
No primeiro lote de descobertas, chamou a atenção dos pesquisadores o papel de dois radicais orgânicos, o grupo metila (que contém um átomo de carbono ligado a três átomos de hidrogênio) e o grupo acetila (que contém dois átomos de carbono, três de hidrogênio e um de oxigênio). Quando se liga ao DNA, o grupo metila “desliga” o acesso àquele trecho do código genético. Já a ligação do grupo acetila a proteínas chamadas histonas, que envolvem o DNA, tornam esses trechos mais acessíveis.
A busca por referências da atuação do epigenoma surgiu nos anos 1990, mas monitorá-las nos mais de 200 tipos de células do organismo e 3 bilhões de letras do DNA é uma missão hercúlea. Para complicar, inicialmente os laboratórios dedicados a essa pesquisa usaram cada um o seu método próprio, o que dificultou a troca de informações entre eles. Apenas com o lançamento do Projeto do Mapa Epigenômico, em 2008, surgiu uma forma comum de abordagem do tema, que possibilitou a divisão do trabalho entre os participantes e o armazenamento das informações obtidas num banco de dados comum. Os primeiros frutos desse esforço já constituem um avanço substancial em relação ao objetivo internacional de decodificar pelo menos 1.000 marcadores (elementos que podem ter sua atuação rastreada) epigenéticos até 2030.
As informações reunidas pelos pesquisadores já permitiram avanços no estudo do câncer. A origem dessa doença, em cerca de 5% dos pacientes, está em um local do corpo de localização complicada. Essa informação é importante porque tipos diversos de câncer respondem a remédios diferentes.
A partir dos dados do Projeto do Mapa Epigenômico, uma equipe da Escola de Medicina da Universidade Harvard, liderada por Shamil Sunyaev, previu a origem de 88% dos tumores. “A própria sequência de DNA lembra a célula original”, afirma ele. O alto índice de sucesso indica que a análise do epigenoma da doença pode informar de onde ela veio e qual é a melhor forma de tratá-la. A técnica usada poderá estar disseminada nos hospitais em até cinco anos, acredita Sunyaev.
O epigenoma também ampliou a compreensão sobre a doença de Alzheimer. Sabia-se que os microgliócitos, células do sistema imunológico situadas no cérebro, participavam desse processo. Mas essas células deflagrariam o problema ou seriam acionadas em decorrência dele? Ao observarem o epigenoma de um rato usado em estudos sobre Alzheimer, Manolis Kellis e colegas do MIT descobriram que, à medida que a doença avançava, os marcadores epigenômicos nos neurônios do animal e seus microgliócitos sofriam alterações que levavam à ativação dessas células e ao desligamento neural. O tecido cerebral de pessoas com Alzheimer tinha mudanças semelhantes. De acordo com os pesquisadores, fica nítido que lidar com os microgliócitos será parte fundamental do tratamento da doença.
“A única forma de cumprir a promessa da medicina de precisão é incluir o epigenoma”, avalia Kellis. Os primeiros resultados obtidos com o projeto animaram os cientistas. “Os próximos dez anos serão emocionantes para o campo da epigenômica e das doenças”, prevê o peaquisador.
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Em busca dos genes benéficos
Cientistas britânicos planejam lançar ainda este ano um ambicioso projeto destinado a descobrir genes capazes de proteger as pessoas contra várias doenças, como moléstias cardíacas ou câncer. A iniciativa, denominada East London Genes and Health, pretende sequenciar o genoma de 100 mil pessoas de origem paquistanesa e bengali que vivem em Londres.
Essas comunidades apresentam os piores índices de saúde do Reino Unido, com média de mortalidade duas vezes maior em casos de doença cardíaca e cinco vezes maior em relação a diabete do tipo 2. Mas os pesquisadores creem que há pessoas saudáveis nesse meio, caracterizado por um alto índice de casamentos entre primos (o que facilita a investigação genética), e é no seu genoma que eles esperam encontrar as respostas que procuram.