15/10/2025 - 9:26
Especialistas apontam erros e acertos do remake de um dos maiores clássicos da teledramaturgia nacional.O relógio marcava 18 horas quando o telefone tocou na casa de Beatriz Segall. Era sexta-feira, 23 de dezembro de 1988, antevéspera de Natal. Do outro lado da linha, o publicitário Washington Olivetto explicou à atriz que tinha criado um anúncio para uma companhia de seguro, e precisava de autorização para publicá-lo nos jornais.
A ideia era estampar uma foto dela e, logo abaixo, a seguinte frase: “Faça seguro. A gente nunca sabe o dia de amanhã”. No dia seguinte, na noite de Natal, sua personagem em Vale Tudo, Odete Roitman, seria assassinada a tiros. Na mesma hora, Segall aceitou a proposta. “Cobrei muito pouco. Poderia ter cobrado mais”, admitiu, aos risos, em depoimento ao portal do Memória Globo, em 2016.
Em 7 de outubro deste ano, um dia depois do (novo) assassinato de Odete Roitman, Débora Bloch caiu na risada ao se deparar com uma mobilização no Instagram para um bloco de Carnaval chamado Débora Bloco, que reuniu fãs do remake. “Eu iria, se estivesse viva”, brincou a atriz nos comentários.
Trinta e sete anos separam a versão original, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, de sua releitura, adaptada por Manuela Dias. Em 1988, ainda não existia rede social. Em 2025, o telefone fixo virou peça de museu – só 7,5% dos domicílios têm o modelo para fazer e receber ligações.
“O jeito de ver televisão também mudou. Antigamente, o público repercutia o capítulo da novela no dia seguinte. Hoje, repercute em tempo real”, compara a socióloga Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Uma curiosidade: em 1988, a audiência de Vale Tudo no dia do assassinato de Odete Roitman chegou a 81 pontos; em 2025, não passou, em média, de 30,8. Já na plataforma de streaming da emissora, a transmissão ao vivo do capítulo da novela bateu recorde. Sinal dos tempos digitais.
Altos e baixos
Uma pesquisa do Datafolha revelou que 65% dos entrevistados consideram o remake ótimo ou bom, 25% regular e 8% ruim ou péssimo. Coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisadores da Ficção Televisiva (Obitel Brasil), Immacolata faz parte do primeiro grupo. “A Odete de Débora Bloch é diferente da Odete de Beatriz Segall. Não tinha cabimento fazer igual. Para copiar a anterior, reprisa a original”, ironiza.
Entre os acertos, Immacolata destaca a escalação de duas atrizes negras, Taís Araújo e Bella Campos, para interpretar Raquel Acioli e Maria de Fátima. “Dizem que a nova versão é despolitizada. Não se fala em inflação, mas se fala em racismo. Tudo é política!”. No original, só havia dois atores negros: Zeni Pereira, que interpretava uma empregada doméstica, e Fernando Almeida, um menino de rua.
O jornalista Mauricio Stycer é dos que dizem que a nova versão é despolitizada. “Suspeito que isso tenha ocorrido por receio de afastar parte da audiência”, arrisca o coautor da biografia de Gilberto Braga, O Balzac da Globo. Stycer explica que, em geral, remakes geram muita expectativa, mas, na maioria das vezes, dão pouca audiência.
Quem também gostou do que viu foi o consultor Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro A Hollywood Brasileira. No entanto, para evitar comparações, ele mudaria os créditos iniciais: “Novela inspirada no original de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères”.
“O correto mesmo seria ter outro nome, mas esbarraria na questão mercadológica. O intuito era produzir uma nova versão de um clássico da teledramaturgia”, pondera Alencar. Ele destaca o drama de Heleninha (Paolla Oliveira), sobre o alcoolismo; a campanha Prato Solidário, sobre pessoas em situação de vulnerabilidade, e o Instituto Vida Livre, sobre o tráfico de animais silvestres. “A ficção extrai o drama da realidade e devolve, em forma de arte, importantes resoluções sociais.”
O fato de gostar do remake de Vale Tudo não impede a jornalista Cecília Almeida Rodrigues Lima de apontar eventuais deslizes na nova versão. Doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ela lamenta o apagamento de certos personagens centrais na reta final: “De heroína, Raquel foi reduzida a coadjuvante”, queixa-se.
O mesmo se pode dizer do mote original da novela: “Vale a pena ser honesto no Brasil?”. “Era uma boa oportunidade para discutir ética, desigualdade e meritocracia”, provoca Lima.
Remake ou reboot?
Entre os 25% dos brasileiros que classificam o remake como regular está o roteirista Lucas Martins Néia, doutor em Ciências da Comunicação pela USP. Ele concorda com Immacolata quando ela diz que Dias escreveu uma nova novela, mas discorda quando o assunto é a politização da trama. “A Globo não queria desagradar nenhum dos dois lados”, opina.
Em compensação, a novela conseguiu dialogar com a geração Z. Um exemplo disso é o perfil de Fátima Acioli no Instagram, com 812 mil seguidores. “Muitas falas de Odete eram pensadas para viralizar nas redes”, Néia dá outro exemplo. Uma curiosidade: 80% dos espectadores entre 16 e 24 anos consideram o remake de Vale Tudo ótimo ou bom.
Os mais jovens assistem à telenovela de maneira distinta. Enquanto a Geração X espera o Jornal Nacional acabar para assistir ao capítulo do dia, a Geração Z vê Vale Tudo onde, como e quando bem entende. “Alguns se interessam apenas por ver recortes da narrativa. Outros preferem ‘maratonar’ vários capítulos de uma vez”, observa o historiador Jéfferson Balbino, doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Para Balbino, Vale Tudo não foi nem excepcional, nem vexatória. Foi protocolar. Se dependesse dele, obras atemporais não deveriam ser refeitas. A não ser que fossem pelos autores originais. “Por que Mulheres de Areia e A Viagem fizeram sucesso na TV Globo? Porque foram adaptadas pela própria Ivani Ribeiro. Ela apenas acrescentou o que faltou dizer na versão original”, observa.
Para a publicitária Sandra Depexe, doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Vale Tudo teve altos e baixos. Entre os pontos positivos, sublinha o casal Cecília e Laís, que seguiu até o fim da trama e chegou a adotar uma criança. Na versão original, Cecília morre e Laís disputa os bens da esposa, com o irmão dela, Marco Aurélio. Causa mortis? Rejeição do público!
Mas, houve pontos negativos também. “Pecou na inserção de trends sem aprofundamento narrativo, como no caso dos bebês reborn, ou de alguns merchandisings que pareciam fugir do contexto da cena, como o sabão em pó da Solange”, adverte. Quem também escapou da morte foi Leonardo. No original, o irmão gêmeo de Heleninha morreu em um acidente de carro.
Paródia de si mesmo
Mas há quem não tenha aprovado a releitura de Manuela Dias. São os 8% que avaliam o remake como ruim ou péssimo. A pesquisadora Tatiana Siciliano, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é uma delas. Como novela, Vale Tudo conquistou tudo o que se espera de uma produção do gênero: gerou receita, engajou o público, causou polêmica… Mas, como obra, deixou a desejar, na sua opinião.
“Naturalmente, não se pode cobrar de um remake uma cópia da obra original. Por outro lado, é importante preservar a essência da obra original. Isso, a Vale Tudo de 2025 não fez”, pondera Siciliano. “A nova versão não teve o mesmo impacto sociopolítico da original. Trocou a crítica pela caricatura. É uma paródia.”
Autora de O Brasil Mostra a Sua Cara: Vale Tudo, a Telenovela que Escancarou a Elite e a Corrupção Brasileira, a jornalista Ana Paula Gonçalves engrossa o coro dos descontentes. “Foram tantas as mudanças que não dá para chamar de remake”, lamenta.
Doutora em Comunicação pela PUC-Rio, ela acredita que até temas importantes foram tratados superficialmente. Na trama, Lucimar decide processar Vasco por não pagar a pensão alimentícia do filho. A novela provocou um aumento de 300% na busca pelo aplicativo da Defensoria Pública. Em 1988, Vale Tudo não discutiu o tema. “Logo depois, Lucimar volta para o ex-marido e se casa com ele. Para muitos, a autora prestou um desserviço. Uma pena”, lamenta Gonçalves.
Um dado curioso diz respeito a Odete Roitman: em 1988, 38% dos entrevistados eram a favor da morte da vilã – 20% queriam que ela fosse para prisão e 14% que ficasse na miséria. Em 2025, o índice dos que torciam pela morte dela despencou para 4%. Para 47% dos participantes, a megera tinha que ficar pobre e, para 35%, ser presa.
“Muitos se identificaram com a vilã, e chegaram a transformá-la em símbolo de ‘autenticidade'”, afirma a pesquisadora Bruna Aucar, doutora em Comunicação pela PUC-Rio. “Mais do que repulsa, essa adesão afetiva revela um sintoma do nosso tempo: a naturalização do cinismo. A Vale Tudo de 2025 confirma o que a Vale Tudo de 1988 denunciava: a esperteza se confunde com inteligência, e a falta de escrúpulos é celebrada como sinal de força.”