24/10/2025 - 15:15
EUA buscam reconstruir influência na região com pressão militar e política, enquanto Brasil defende integração regional e soberania. Tensão ultrapassa embate por tarifas e reacende debate sobre protagonismo.O possível encontro entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu homólogo americano, Donald Trump, deve ir além da tentativa brasileira de pacificar as relações comerciais entre os dois países. Ele expõe uma disputa crescente de líderes de espectros opostos pela influência sobre a América Latina, em um momento em que o continente volta ao centro das estratégias geopolíticas globais e do interesse da Casa Branca.
Nos últimos meses, Trump escalou tensões com a Venezuela, acusou o governo do colombiano Gustavo Petro de “fracassar no combate às drogas”, reforçou o embargo comercial a Cuba e pressionou o presidente da Argentina, Javier Milei, a conter a aproximação do país com a China. Ao mesmo tempo, tem buscado marcar a presença militar dos EUA na região, com repetidos ataques a embarcações no Oceano Pacífico.
Lula, em contrapartida, tenta reposicionar o Brasil como interlocutor de estabilidade e diálogo, defendendo que a América Latina se torne uma “zona de paz” e que os países da região “não se deixem arrastar por disputas de potências globais”. O discurso reflete uma tentativa de recuperar o protagonismo diplomático brasileiro e de apresentar uma alternativa à lógica de alinhamento automático com Washington.
“Lula tenta reabilitar a diplomacia de concertação sul-americana [prática de coordenação e diálogo político entre os países], com ênfase em mecanismos regionais e agendas sociais. Já Trump opera por pressão assimétrica, como tarifas, sanções, etc. Não é uma disputa de ‘liderança pessoal’ apenas, mas de enquadramento da América Latina como plataforma de integração e diversificação de parcerias, na visão brasileira, ou de uma zona de influência sob condicionalidades de segurança e comércio, na visão trumpista”, diz o professor de Relações Internacionais da FAAP, Lucas Leite.
Projeto brasileiro contrasta com hegemonia americana
A reunião entre os presidentes deve ocorrer no próximo domingo, na Malásia, onde ambos participarão da cúpula da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático). O objetivo é consolidar a reaproximação diplomática do Brasil com os EUA, abalada desde que o republicano voltou à Casa Branca e impôs tarifas extras a produtos brasileiros.
Apesar de não ter sido confirmada oficialmente pelo Palácio do Planalto, Lula tem reforçado publicamente seu interesse de que ela aconteça. Em visita à Indonésia nesta sexta-feira (24/10), disse que não há “assunto proibido” para conversar com o americano. A expectativa anunciada pelo brasileiro é que Washington reconsidere as sobretaxas e sanções a autoridades impostas pela Casa Branca.
Neste meio tempo, os dois líderes trocaram críticas diretas. Lula afirmou que Trump queria ser “o imperador do mundo” enquanto o americano alegou que as instituições brasileiras faziam uma “coisa terrível” ao julgar o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Os dois se encontraram durante a Assembleia da ONU, em setembro, e prometeram conversar. Uma primeira reunião por videoconferência foi avaliada como positiva pelos dois lados. Agora, a expectativa é que as tratativas reflitam questões mais duradouras das políticas externas dos dois países, que vai além dos governos de momento, diz Lívia Peres Milani, pesquisadora do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP.
“Para os Estados Unidos, a manutenção da hegemonia é objetivo estratégico permanente desde o século 19. Neste segundo mandato Trump, há uma percepção mais aguda de riscos a essa hegemonia e uma maior disposição de impô-la através da força. Essa percepção de riscos já vinha sendo gestada há algum tempo, desde os governos Obama, mas decorre em práticas mais agressivas agora”, afirma.
“Já para o Brasil, o projeto de construção da liderança na América do Sul também tem antecedentes históricos importantes, inclusive nos primeiros governos Lula. Importante que essa ideia de liderança é referente a América do Sul, não inclui o Caribe, América Central e México, lugares onde a hegemonia dos EUA é mais intensa”, completa.
Disputa ecoa esforço de décadas
Assim como no passado, a região é atingida pelos ecos da disputa política entre duas potências que representam formas distintas de enxergar o mundo, representadas agora por China e Estados Unidos. Para Milani, o discurso de competição estratégica, que enxerga a América Latina como parte de uma disputa global envolvendo China e Rússia, já aparecia de forma discreta durante os governos de Barack Obama, nos EUA, mas ganhou força com o primeiro mandato de Donald Trump e se manteve sob Joe Biden.
“É um retorno das disputas entre grandes potências que pareciam superadas com a hegemonia dos EUA nos anos 1990”, diz Milani. O embate acaba por enfraquecer o regionalismo proposto pelo Brasil. “Mas, é possível e necessário fortalecê-lo, o que é um projeto de médio e longo prazo, que deve se assentar em participação social e democratização. O militarismo de Trump ajuda a iluminar tais convergências e é um convite ao fortalecimento da governança regional.”
Para Lucas Leite, Trump resgata a retórica da Guerra Fria, que divide “amigos” e “inimigos”, mas aposta em outra linguagem. “O que está em jogo hoje é o controle de cadeias produtivas, tecnologias estratégicas e rotas de comércio. É menos sobre ideologia e mais sobre poder econômico e tecnológico”, explica. “O discurso de ameaça existencial, por exemplo, passa longe da questão das armas nucleares. E como antes, a América Latina entra nesse tabuleiro como espaço de disputa por influência”, diz.
Blocos regionais sob pressão
Apesar da intenção de protagonismo dos dois atores políticos, a realidade se impõe, trazendo dificuldades para ambos os planos. Do lado brasileiro, a crescente falta de consenso entre os países da região dificulta uma possível liderança na agenda de integração regional e defesa da soberania.
“Ao contrário da primeira década dos anos 2000, onde você tinha uma convergência em relação às visões do que deveriam ser a América Latina, especialmente a América do Sul, e como os países deveriam se aproximar para poder conseguir obter mais ganhos nas negociações internacionais, esse consenso hoje é muito frágil”, afirma Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV.
Além disso, os blocos comerciais e de integração regional perderam relevância nos últimos anos. A Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) se tornou mais um espaço de diálogo do que um bloco com capacidade executiva, argumenta Leite, da FAAP. “O Mercosul segue sendo o mais estruturado, mas precisa se atualizar, lidar com novas agendas como energia limpa, tecnologia e infraestrutura, e superar as divergências internas que travam acordos”, afirma. A reativação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) também não parece figurar no topo das prioridade dos países.
Já do lado dos EUA, o excesso de intervenções, influenciadas pela Doutrina Monroe, que buscava ampliar a influência americana na América Latina, preocupa cada vez mais lideranças da região.
“Os Estados Unidos, historicamente, foram mais intervencionistas na América Central e Caribe, e a América do Sul sempre foi muito mais atuante sobre pressões específicas, sobre governos, ameaças, sanções, mas não necessariamente teve ameaça tão direta de intervenção militar como a gente está vendo em relação à Venezuela, por exemplo, agora”, afirma Brites.
Além disso, a China se consolidou como o principal parceiro comercial de grande parte dos países latino-americanos, impulsionando a região com crédito, investimentos em infraestrutura e transferência tecnológica. Os EUA, por sua vez, buscam conter essa expansão por meio de acordos bilaterais estratégicos e de uma crescente pressão diplomática para garantir alinhamento em temas sensíveis, que vão das redes de telecomunicações ao controle de minerais críticos, com destaque para o Brasil.
“Isso coloca os países latino-americanos em uma posição delicada. Ninguém quer escolher um lado, mas todos precisam administrar dependências. O desafio é transformar essa disputa em oportunidade: atrair investimento, negociar transferência de tecnologia e fortalecer a autonomia regional”, afirma Leite. “O risco é cair novamente em um jogo de dependência, em que a agenda é definida fora da região. Em última instância, a América Latina permanece sem autonomia e capacidade articular seus interesses sem ter que levar em conta potências extrarregionais.”
