16/06/2020 - 18:09
Uma pesquisa realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou a história cultural do humor da belle époque (desde meados de 1870) aos anos 1920, na cidade do Rio de Janeiro. O estudo permite analisar como o racismo, a ideologia do branqueamento e a democracia racial se perpetuaram no imaginário nacional, por meio de chistes, textos humorísticos, sátiras e charges. “Naquele período foram muitas ilustrações, poesias satíricas e textos veiculados em jornais e revistas, que circulavam na então capital federal, a cidade do Rio de Janeiro”, conta a historiadora Maria Margarete dos Santos Benedicto. Ela é autora da pesquisa de doutorado “Quaquaraquaquá quem riu? Os negros que não foram…: A representação humorística sobre os negros e a questão do branqueamento da belle époque aos anos 1920 no Rio de Janeiro”.
Sob orientação do professor Elias Thomé Saliba, a pesquisadora analisou documentos compostos, em sua maioria, por textos humorísticos que permitem perceber como o racismo, a ideologia do branqueamento e a democracia racial se perpetuaram no imaginário nacional. Os humoristas estudados foram: Antônio Torres (1885-1934), Emílio de Menezes (1866-1918) e Manoel Bastos Tigre (1882-1957). “Este último teve não somente o seu trabalho humorístico analisado, mas também a revista de sua propriedade e direção, a ‘D. Quixote’ (1917-1927). Apesar das percepções diferentes de mundo, esses personagens possibilitaram destacar como o riso e o humor são fenômenos determinados pela cultura.”
Precursores
Margarete também analisou mais de 30 publicações, entre jornais, revistas ilustradas e humorísticas. Dentre os periódicos analisados, destaque para “Semana Ilustrada” (1861-1876); “O Mequetrefe” (1875-1893); “Revista Ilustrada” (1876-1898); “O Malho” (1902-1954); “Fon Fon!” (1907-1942); “Careta” (1908-1926). Apesar do contexto da tese estar situado entre os anos da belle époque aos anos 1920, o trabalho também analisa as três últimas décadas do século 19, pois, para a historiadora, esse contexto é importante e foi quando ocorreram a Guerra do Paraguai (1864-1870), as Leis protelatórias da abolição e a Abolição. A análise é feita através dos periódicos ilustrados que, de acordo com a pesquisadora, podem ser considerados precursores de uma imprensa irreverente que, por intermédio do humor, expunha as notícias ou críticas à sociedade.
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“Negro correndo é ladrão, parado é suspeito”; “Sabe quando negro sobe na vida? Quando o barraco explode!” Infelizmente, o imaginário que propiciou os chistes, as charges e piadas permanecem vivos ainda hoje. Embora devido à ação, principalmente, dos movimentos sociais negros haja um constrangimento em contar essas piadas em público.
Branqueamento
No estudo, Margarete também analisou as políticas de branqueamento instituídas na época. Houve leis e decretos sobre a imigração negra, por exemplo. Ela cita o decreto 528, de 28 de junho de 1890. “De acordo com esse decreto, a entrada de indígenas, provenientes da Ásia e da África, estaria sujeita a uma autorização especial do Congresso Nacional”, conta.
Em outra parte do estudo, a historiadora analisou as representações nas publicações dos negros que foram à Guerra do Paraguai. “O príncipe regente, por exemplo, mandou seus escravos, o que foi feito por muitos senhores brancos da época”, descreve. “Aliás”, lembra a pesquisadora, “no período pós-proclamação da República a intelligentsia brasileira iniciou as discussões sobre a identidade nacional, pois queriam uma nação eurocêntrica e apagar de vez o passado escravista”.
Protagonistas do humor racista
O estudo de Margarete dedica capítulos que traçam parte das trajetórias de três personagens que se destacaram à época, com seu “humor racista”: Antônio Torres, Emílio de Menezes e Manoel Bastos Tigre.
Antônio Torres, ex-padre, escritor, jornalista e humorista, residiu um bom período de sua vida no Rio de Janeiro. Destacou-se por confusões e polêmicas com as quais se envolveu durante sua trajetória, “em particular, pelo seu humor ácido, corrosivo e lusofóbico, ou ‘tamancofobia’, para utilizarmos o termo empregado pelo autor”. Autodeclarado “mulato”, provocava os “brancos disfarçados” “denunciando” sua origem de descendência negra. Entre as muitas polêmicas que causou nos jornais que trabalhou, como conta Margarete, o entrave que o isolou, inclusive com seus pares, “foram dois artigos publicados na época da Primeira Guerra Mundial, posicionando-se a favor da Alemanha no conflito.”
Obstáculos a viagem
Emílio de Menezes foi jornalista, poeta e humorista. Para o poeta satírico, a cor marca a diferença e o local que o negro deveria ocupar. “Podemos dizer que o nosso personagem era excêntrico e homicida pela palavra”, define a historiadora. Seus sonetos satíricos, entre os quais muitos beiravam o humor negro, “seus trocadilhos terríveis”, “suas epigramas de ferro em brasa” e os “seus epitáfios matavam”. O que provocava o riso para ele, em suas vítimas provocava ódios, constrangimentos, amedrontamento, assim como as suas “vibrantes gargalhadas”.
Manoel Bastos Tigre, engenheiro, bibliotecário, jornalista, publicitário e humorista, fundou a revista “Dom Quixote” em 1917. Também foi presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e presidiu a instituição no período de 1927-1928. Um dos temas trabalhados em sua tese consiste no fato de que Bastos Tigre foi um crítico da Companhia Negra de Revista (1926-1927). A companhia obteve sucesso, como conta Margarete, e foi convidada a fazer uma turnê para a Argentina, Chile, Uruguai, Portugal, França e Alemanha. Mas Bastos Tigre, enquanto presidente da SBAT, impediu a turnê pelo fato de os membros serem negros.
Mais informações com Maria Margarete dos Santos Benedicto (e-mail: mariamargarete_santos@yahoo.com.br)