01/08/2024 - 5:56
Também em 2024, Varsóvia, capital da Polônia, fará silêncio por um minuto. Quando as sirenes soarem, às 17h00, a maioria dos cidadãos, independente de preferências políticas, suspenderá suas atividades em honra dos que se insurgiram contra a ocupação nazista.
O Revolta de Varsóvia (também denominada Levante ou Insurreição), que começou em 1º de agosto de 1944 e foi sufocada após 63 dias de acirrados combates, é um mito fundacional do Estado polonês independente; ela simboliza o ímpeto da liberdade e a garra dos poloneses contra o domínio estrangeiro e o totalitarismo.
Por muitos anos, políticos alemães não foram bem-vindos às cerimônias de comemorativas da revolta. Isso só mudou após a queda da Cortina de Ferro, em 1989.
Em 1994, o ex-sindicalista e presidente Lech Walesa convidou seu homônimo alemão, Roman Herzog, para as festividades em Varsóvia. E foi além: mais do que marcar presença, Herzog foi chamado a discursar.
Presidente alemão comete gafe
“A nós, alemães, nos enche de vergonha que o nome do nosso país e o nosso povo estejam para sempre associados à dor e ao luto impingidos a milhões de poloneses”, discursou Herzog à época. O alemão pediu às vítimas polonesas da guerra perdão “por aquilo que os alemães lhes fizeram”.
A visita de Herzog foi polêmica. Para muitos poloneses, a participação dele na cerimônia veio cedo demais; os veteranos que estavam ao lado do líder alemão se opunham à presença dele. “Não precisamos desses alemães”, diziam os descontentes.
O clima estava especialmente azedo porque Herzog, em entrevista à imprensa, havia confundido essa revolta com o Levante do Gueto de Varsóvia, ocorrido em 1943.
Expulsar alemães antes da chegada soviética
As reservas dos poloneses tinham razão de ser. O massacre pelos alemães fora um trauma profundo na memória nacional. Para o comando nazista em Berlim, valia tudo para retomar o controle da cidade – cujos subúrbios, no fim de julho de 1944, já estavam ocupados pelos tanques do Exército Vermelho da União Soviética.
O Armia Krajowa, exército do movimento de resistência polonesa à ocupação nazista, mobilizou dezenas de milhares de insurgentes, mas só oito de cada dez deles tinha uma pistola.
O comando da iniciativa, liderada por um governo anticomunista exilado em Londres, queria libertar Varsóvia dos alemães antes da chegada dos soviéticos, que eram vistos como uma ameaça à independência do país. Àquela altura, iam-se cinco anos sob o jugo dos nazistas.
Massacre sádico pelas tropas da SS nazista
Nos primeiros dias da revolta, grandes partes da capital polonesa foram de fato libertadas, mas não pontos estratégicos, como as pontes sobre o rio Vístula, a linha central ferroviária, o aeroporto e o “Bairro Alemão”.
As tropas nazistas reagiram rápido. Heinrich Himmler, comandante da milícia paramilitar SS, encarregou Heinz Reinefarth da tarefa de esmagar a revolta. Entre as tropas deste estava a Brigada Dirlewanger, famosa por crimes de guerra: “O que devo fazer com os civis? Tenho mais presos que munição”, questionaria o militar ao avançar contra Varsóvia.
“A entrada de Reinefarth transformou a batalha em uma carnificina”, define o historiador Stephan Lehnstaedt. Nas semanas seguintes à revolta, com a ajuda da força aérea Luftwaffe, dos tanques e da artilharia pesada, as tropas alemãs retomaram um bairro após o outro.
No bairro Wola, oeste de Varsóvia, estima-se que tenham sido assassinados entre 30 mil e 40 mil cidadãos, principalmente civis. Historiadores poloneses falam de mais de 50 mil mortos. Doentes e feridos foram baleados em hospitais, enfermeiras foram estupradas e mortas sob “toda espécie de práticas sadistas”, segundo Lehnstaedt.
“Os excessos foram planejados e intencionais. Poucos dias depois, o obergruppenführer [segunda principal patente da SS] Erich von dem Bach, subordinado a Reinefarth, restringiu a violência contra civis, por temer que os excessos tivessem como reação uma resistência ainda mais forte.”
Demora suspeita do Exército Vermelho
Os soviéticos só chegaram à margem leste do rio Vístula em 15 de setembro, quando a insurgência polonesa já havia sido esmagada pelas tropas alemãs.
Embora isso não tenha sido provado, há vários indícios de que a demora do Exército Vermelho tenha sido uma decisão deliberada do ditador soviético Josef Stalin, pois àquela altura já era tarde demais para acudir aos poloneses. A ajuda dos Aliados, por sua vez, restringiu-se ao envio de armas pelo ar.
No final, só restou ao Armia Krajowa a capitulação, assinada em 2 de outubro pelo comandante Tadeusz Komorowski, codinome “Bór”.
O saldo da revolta polonesa é trágico: cerca de 18 mil revoltosos e 180 mil civis morreram. Pelo menos meio milhão de residentes foram expulsos de Varsóvia; vários acabaram em campos de concentração ou viraram mão de obra escrava. No lado alemão, por sua vez, as perdas não passaram de 2 mil soldados e oficiais.
Assassinos nazistas impunes
Himmler se mostrou “muito satisfeito” com o banho de sangue. Em discurso no fim de setembro de 1944, disse considerar a revolta uma “bênção” por permitir eliminar “a capital, a cabeça, a inteligência desse ex-povo de 16, 17 milhões”, que há 700 anos “bloqueava” o Leste Europeu, região que os nazistas reclamavam para si.
A partir de outubro de 1944 a SS passou a saquear e destruir a cidade de forma sistemática. “Cada quarteirão deve ser queimado e implodido”, era o comando de Himmler. Os soldados soviéticos que encontraram a cidade desguarnecida em 17 de janeiro de 1945 se depararam com um deserto de pedras sem vida humana.
Os responsáveis pelos crimes de guerra em Varsóvia nunca foram punidos. Reinefarth, que foi capturado após o fim da guerra morreu em paz em 1979, apesar de a Polônia ter exigido repetidas vezes sua extradição.
Em vez de responder pelo massacre que comandou, o ex-oficial nazista serviu no pós-guerra à inteligência americana e posteriormente fez carreira política no estado alemão de Schleswig-Holstein, como deputado estadual e prefeito de Westerland, na Ilha de Sylt.
Vítimas polonesas ainda esperam por reparação
Apesar de alguns solavancos, as relações entre a Polônia e a Alemanha melhoraram nos 30 anos seguintes à visita do presidente Herzog. A presença de políticos alemães de alto nível em Varsóvia no aniversário da revolta já não é mais algo incomum.
Ainda assim, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier não terá diante de si uma tarefa fácil quando discursar na praça Krasinski nesta quarta-feira (01/08). Depois de Herzog, ele será o segundo presidente alemão da história a participar da cerimônia em memória da revolta.
Sobre a reconciliação teuto-polonesa, desde a mudança de governo em Varsóvia em 2023, uma pergunta paira sobre ambos os Estados, como uma espada de Dâmocles: haverá reparação para as vítimas do nazismo? Dos alemães, mais do que uma nova admissão de culpa, os últimos sobreviventes poloneses esperam compromissos financeiros concretos.