19/07/2020 - 13:35
Em 2 de agosto do ano passado, terminou a última passagem do físico Ricardo Magnus Osório Galvão pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, interior paulista. A primeira se dera de forma rápida e discreta em 1970, quando o então recém-formado engenheiro de telecomunicações ali permaneceu por cerca de um ano antes de se transferir para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A derradeira, na condição de diretor do instituto federal, durou três anos e chegou ao fim como notícia de destaque no Brasil e no exterior. Galvão defendeu publicamente a correção e a lisura dos dados produzidos pelo Inpe sobre o desmatamento da Amazônia – um trabalho de qualidade reconhecido há anos em todo o mundo – das críticas infundadas feitas por ministros de Estado e pelo presidente Jair Bolsonaro. Foi exonerado naquela data e voltou para seu trabalho no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).
Quase um ano depois do incidente, Galvão, como boa parte dos brasileiros durante a epidemia de covid-19, está isolado, ao lado da mulher, em seu sítio em Paraibuna, no interior paulista. Além de preparar aulas, o físico pode se dedicar a outras duas paixões no imóvel rural: criar abelhas e andar de bicicleta. Nesta entrevista, concedida por meio de um aplicativo, o pesquisador fala de seu início na carreira de cientista, de sua especialidade, a física de plasmas (estado da matéria similar a um gás em que uma porção das partículas está ionizada), e rememora sua saída ruidosa do Inpe.
LEIA TAMBÉM: Yuval Noah Harari: “Toda crise também é uma oportunidade”
O Inpe divulgou em 9 de junho a taxa consolidada de desmatamento de 2019 na Amazônia Legal. Foram suprimidos 10,1 mil quilômetros quadrados (km²) de vegetação nativa, a maior taxa desde 2008. Esse cenário já se desenhava quando o senhor deixou o instituto?
Infelizmente, o desmatamento já dava sinais de estar aumentando e agora está bastante fora de controle. Esse aumento é muito preocupante. Neste ano, segundo dados do Deter [Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real], do Inpe, que emite alertas de desmatamento, o corte de vegetação está ocorrendo durante a estação da chuva na Amazônia, quando usualmente o desflorestamento tende a ser bem menor. Normalmente, a época mais intensa do desmatamento começa no fim de maio e vai até outubro. A Política Nacional sobre Mudança do Clima, instituída por uma lei de 2009, estabeleceu que em 2020 o desmatamento no país deveria ser menor do que 4 mil km². Certamente o governo não vai cumprir essa lei. Um relatório técnico recente do Inpe mostra que, de agosto de 2019 até maio deste ano, nós já desmatamos na Amazônia 89% do que havíamos feito em todo o ano passado. Se o descontrole continuar, tenho quase certeza de que a taxa anual do desmatamento vai passar dos 12 mil km². Há também o problema das queimadas, que ocorrem principalmente depois do desmatamento, quando o clima está mais seco. A poluição no ar se torna terrível e há um grande aumento de doenças pulmonares. Se o auge da pandemia de covid-19 atrasar na Amazônia, o pico de infecções do novo coronavírus pode coincidir com o das queimadas. Essa situação poderia levar à completa falência do sistema de saúde na região Norte.
Os dados indicam que o desmatamento também avança sobre unidades de conservação e terras indígenas.
O desmatamento nas áreas indígenas é, em grande parte, promovido pela mineração ilegal. Só em terras dos ianomâmis existem mais de 200 mineradores não autorizados. Tem gente entrando nas áreas, desmatando e transferindo o coronavírus para os indígenas.
Em que momento do ano passado o senhor começou a sentir algum desconforto da parte do governo federal em relação ao monitoramento do desmatamento da Amazônia feito pelo Inpe?
É importante que essa história fique registrada. Minha passagem na direção do Inpe foi importantíssima para mim, inclusive para o aumento do meu conhecimento sobre outras áreas da ciência. Isso também aconteceu comigo quando estive à frente do CBPF [Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, instituição federal que dirigiu de 2004 a 2011]. Quando cheguei ao Inpe, não conhecia praticamente nada sobre desenvolvimento de satélites nem dominava a questão das mudanças climáticas. Passei a estudar essas áreas, que me encantaram bastante. O Inpe sempre desenvolveu satélites para aplicações importantes, como sensoriamento remoto e monitoramento do desmatamento. Hoje a tecnologia de pequenos satélites, de até 100 quilos, tornou-se muito barata. Participei durante todo o ano de 2018 de um grupo de trabalho montado pelo governo federal para reformular o programa espacial brasileiro. Estava muito animado com as possibilidades e o envolvimento do Inpe nesse tema. Durante minha gestão, não por mérito meu, mas dos pesquisadores que trabalham nessa área, o Inpe começou a se estruturar para monitorar o desmatamento em todos os biomas brasileiros, não apenas na Amazônia. Esse projeto, espetacular, foi elaborado pelos pesquisadores e contou com cerca de R$ 70 milhões do famoso Fundo Amazônia, que o atual governo federal tanto critica. Na verdade, ainda durante a campanha presidencial de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro começou a falar que não acreditava nas mudanças climáticas e não dava valor para a manutenção da floresta. Até falava contra os agentes do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. As críticas já me abalaram muito.
Por quê?
No governo Michel Temer, fui o responsável, ao lado da então presidente do Ibama, Suely Araújo, pelo aprimoramento de um acordo de colaboração técnica entre o Inpe e o Ibama. Essa cooperação prevê o acesso automático do Ibama aos alertas diários de desmatamento fornecidos pelo Deter. O sistema abastece as coordenadas geográficas para o pessoal do Ibama poder atuar na fiscalização. Esses dados são mantidos em sigilo por 10 dias, para não avisar aos desmatadores que o sistema os flagrou e dar tempo para o Ibama preparar suas ações. Não existe esse processo de o Inpe não repassar os dados ao Ibama, como o governo federal alegava. Eles só não têm os dados de alerta de desmatamento se não acessarem o Deter. Esse acordo se encerrou em novembro de 2018 e, com a posse do novo governo federal, eu esperava que houvesse uma discussão imediata para sua renovação. Não tratei do tema com o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, mas com meu superior imediato, que não deu importância para o assunto. Então, em janeiro do ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fez a primeira crítica contundente ao Deter. Disse que o sistema não tinha dados com precisão suficiente para que o Ibama tomasse ações. Por isso, eles queriam contratar os serviços de uma empresa americana, a Planet, que, aliás, é muito boa. Salles falou várias inverdades em relação ao Deter. Aquilo me aborreceu.
Como o senhor reagiu?
Eu e o pessoal da Coordenação de Observação da Terra do Inpe escrevemos uma nota, que publicamos em nosso site. Explicamos que não era necessário ter uma resolução de 3 por 3 metros, como o ministro defendia, para ver se há desmatamento. A copa de uma árvore na Amazônia tem de 10 a 20 metros. Ninguém do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações [MCTI] deu importância para nossas explicações. Comecei a ficar bastante preocupado. Em seguida, Salles fez três reuniões em Brasília com militares, gente do Ibama e da Planet. Ninguém do Inpe foi convocado. Fui informado por dois militares que participaram das reuniões sobre o que estava ocorrendo. Salles não sabia do que estava falando. A Amazônia tem cerca de 5 milhões de km². Para processar imagens com resolução de 3 por 3 metros, como ele queria, seria necessária uma capacidade computacional duas vezes superior à do melhor supercomputador que temos, o Santos Dumont, do Laboratório Nacional de Computação Científica [LNCC]. A Coordenação de Observação da Terra do Inpe publicou outras notas técnicas que encaminhei ao MCTI, mas nunca tive resposta. Algum tempo depois, por volta de março, falei em Brasília com o responsável por outra secretaria do MCTI, um cientista muito bom, que não era meu superior imediato, cujo nome não vou revelar. Consegui marcar uma reunião com ele. Queria propor ao governo federal que realizasse uma inspeção in loco, a partir dos dados de desmatamento do Inpe, como já foi feito no passado, para comprovar que nossas informações eram corretas. Saí bastante satisfeito do encontro.
Mas, em seguida, a situação se deteriorou em vez de melhorar.
Uma semana depois, fui chamado a Brasília pelo secretário-executivo do MCTI e pelo meu chefe imediato. Eles me criticaram por eu ter tratado do assunto desmatamento com outra secretaria, e não com eles. Disseram que cabia ao governo federal dizer se os dados de desmatamento deveriam ser divulgados ou não. Argumentei que eles estavam errados e que os dados estariam sempre disponíveis. Disse que o Inpe era uma instituição respeitadíssima, que eu tinha um nome como cientista e não abriria mão disso de jeito nenhum. Saí da reunião em uma situação difícil. Depois disso, os ataques começaram a ser mais diretos a mim e aos dados do Inpe. Em paralelo, vi que os alertas do Deter indicavam um aumento do desmatamento na Amazônia. Mandei um relatório da situação ao chefe de gabinete do ministro Pontes, mas, de novo, nunca tive resposta. Até que chegou o início de julho e o general Augusto Heleno [ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional] deu uma entrevista à emissora britânica BBC dizendo que os dados do Inpe sobre desmatamento eram “manipulados”. Uma hora e meia depois, antes mesmo de eu ter lido a entrevista, recebi telefonemas da BBC, de colegas da Sociedade Europeia de Física e do Met Office [serviço nacional britânico de meteorologia]. Todos queriam saber o que estava ocorrendo com os dados do Inpe. O governo federal não tinha o menor entendimento do que significava atacar os dados no Inpe no contexto internacional.
O senhor acha que o governo não se deu conta do impacto negativo que essas críticas teriam sobre a imagem do país?
Exatamente. No exterior, a respeitabilidade do Inpe é totalmente consolidada. Infelizmente, o governo, em particular o ministro Salles, não tem circulação no meio científico. Mas eu não esperava que o ministro Marcos Pontes não tivesse nenhuma reação aos ataques. Para ter acesso a ele, tinha que falar com uma pessoa acima de mim, que sempre bloqueava meu acesso. Pontes é militar e a relação com ele era muito diferente da que ocorre com um ministério civil. Escrevi então um ofício direto ao ministro Pontes, detalhado, explicando que esse embate entre o Inpe e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) não poderia continuar. Seria muito prejudicial ao país. Propus que ele entrasse em contato com o ministro Salles e com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Coloquei-me à disposição para ir a Brasília discutir pessoalmente todos os dados do Inpe. Se quisessem, poderíamos desenvolver ferramentas computacionais para ter um melhor acesso aos dados. Julgava que era importantíssimo arrefecer completamente aquele estado de confronto. Mandei o ofício para o ministro Pontes, ao secretário-executivo do MCTI e ao meu chefe imediato. Novamente, ninguém respondeu. Isso está documentado no Sistema Eletrônico de Informação, o SEI, do governo federal, que é de acesso livre.
Onde o senhor estava quando o presidente Bolsonaro afirmou, em 19 de julho, que os dados do Inpe eram mentirosos e o senhor estaria a serviço de alguma organização não governamental (ONG)?
Estava em uma banca de doutorado na Universidade Federal Fluminense [UFF], em Niterói. Só vim a saber da entrevista à noite, quando fui para a casa do meu irmão, na mesma cidade, e li a notícia. Tenho que dizer que passei muito mal. Por sorte estava com a minha esposa e um colega. A essa altura, os jornalistas estavam me telefonando e a primeira chamada que recebi foi de um jornal de Portugal. Em princípio, optei por não responder. Queria ver a própria entrevista. Às vezes, o que está escrito no jornal não é exatamente o que foi dito. Mas, quando vi a entrevista, fiquei realmente chocado. O presidente não só disse que os dados eram mentirosos, mas que eu estaria muito provavelmente a serviço de uma ONG, contra os interesses do Brasil. Era um ataque muito sério. Dizer, para um cientista, que seus dados são mentirosos pode significar o fim de sua carreira. E os dados não eram meus, mas de meus colegas do Inpe. Se um gestor público tem dúvida sobre o comportamento de um servidor, sua obrigação imediata é abrir uma sindicância investigativa. Se não fizer isso, está prevaricando. Se o presidente tinha essa dúvida, por que não abriu uma sindicância contra mim? Ele fala coisas sem pensar.
O senhor parece ser uma pessoa calma e ponderada. Como formulou sua dura resposta às críticas do presidente?
Achava que o ministro Pontes entraria em contato comigo para discutir a situação. Esperei até o meio-dia do dia seguinte e digeri um pouco o que tinha escutado. Como não houve nenhum contato do ministério, comecei a responder aos jornalistas. Algumas pessoas chegaram a me aconselhar para entrar com uma ação contra o presidente, mas entendi que a situação não era apenas uma contestação aos dados do Inpe. Era também um ataque pensado e violento à ciência. Ponderei que tinha duas opções. Não fazia nada e escrevia para o ministro Pontes para dar uma explicação ao presidente. Ou reagia. Mas, se reagisse, a resposta tinha de ser contundente para chegar à mídia com impacto e, de certa forma, proteger o Inpe. Disse que o presidente tinha tomado uma atitude pusilânime, covarde, ao fazer uma acusação em público envolvendo um tema sobre o qual não tem qualificação para avaliar. Acho que ele esperava que eu me demitisse, mas deixei claro que não faria isso. Disse que as críticas dele eram uma piada de um garoto de 14 anos que não cabia a um presidente da República fazer, e que eu não tinha nenhum relacionamento com ONGs. Defendi o trabalho do Inpe. Sabia que seria certamente demitido. Mas foi uma estratégia feliz. O Inpe se tornou tão exposto na mídia que ficou em uma posição quase inatacável.
Qual foi sua reação quando soube que a revista “Nature” o escolheu como um dos 10 cientistas com atuação mais destacada em 2019?
Estava em Nova York em meados de novembro para participar de uma conferência na Universidade Columbia com brasilianistas. Um fotógrafo da “Nature” tinha entrado em contato comigo e pensei que ele queria falar sobre a questão do desmatamento no Brasil. Quando nos encontramos, ele me perguntou se eu concordava em ser indicado como uma das personalidades do ano da revista. Ele comentou que o negacionismo e as críticas à ciência têm ocorrido em vários países e que a minha resposta a esses ataques tinha sido a mais contundente.
Gostaria de falar do início de sua carreira. O que o levou a estudar engenharia de telecomunicações?
Meu pai trabalhou como engenheiro em várias empresas. Nasci em Itajubá, Minas Gerais, mas nunca vivi lá. Morei em Campinas e depois em São Paulo, onde estudei no colégio Caetano de Campos. Minha família mudou-se para o Rio quando eu tinha 11 anos. Meu pai foi trabalhar na Shell e depois na Petrobras. Morávamos em Niterói. Quis ficar na cidade e fiz vestibular para engenharia na UFF. Gostava de telecomunicações. Uma das poucas coisas boas que o regime militar fez foi estimular esse campo. Criaram a Telebras e a Embratel. Achava que era uma área em que não faltaria emprego, embora já estivesse encantado pela física. A situação econômica da família não era boa. Tinha um irmão que era muito doente. Enquanto fiz faculdade, dava aulas em um cursinho pré-vestibular à noite.
O senhor migrou para a física no doutorado, após ter feito mestrado em engenharia. Por que mudou de área?
Passei aos poucos para a física. Fui muito influenciado por um grande físico alemão que veio trabalhar no Brasil, Bernhard Gross [1905-2002]. No começo do terceiro ano de faculdade, estava pensando em deixar a engenharia e passar para a física. Gross lecionava medidas elétricas na UFF. Mas suas aulas práticas eram no Instituto Nacional de Tecnologia, no Rio de Janeiro. Acabei me dando bem com ele e comentei que pensava em trocar a engenharia pela física. Ele me aconselhou a terminar a engenharia e passar para a física na pós-graduação. Foi o que fiz, embora tenha feito mestrado ainda dentro da engenharia. Meu primeiro emprego foi justamente no Inpe.
Quando foi contratado?
Em 1970. Passei um ano no Inpe. Mas meu orientador de mestrado, o indiano Darhambir Rai, foi contratado para dar aula na engenharia elétrica da Unicamp, uma universidade nova, e eu o segui. Embora estivesse na engenharia elétrica, fiz vários cursos de pós-graduação na física. Em 1972, minha dissertação de mestrado, sobre polarização de ondas curtas na ionosfera, foi a primeira da engenharia elétrica na Unicamp. Em seguida, fui para o MIT [Massachusetts Institute of Technology] fazer doutorado já mais perto da física. Nos Estados Unidos, principalmente no MIT, várias áreas da física são feitas em outros departamentos. Por exemplo, o estudo da física de estado sólido é feito principalmente na engenharia elétrica. Estudei física fazendo doutorado na engenharia nuclear, pois me interessava mais pela fusão nuclear. Depois do doutorado, que terminei em 1976, voltei para o Departamento de Engenharia Elétrica da Unicamp. Fiquei ali por um ano e meio e me transferi para o Instituto de Física Gleb Wataghin, da mesma universidade.
Por que o senhor se interessou pela fusão nuclear, sobretudo a física de plasmas?
Naquela época havia muita discussão sobre a importância da energia nuclear e o problema dos reatores nucleares. Ainda antes do choque do petróleo de 1973, havia preocupação em procurar novas fontes de energia. Já se falava que o petróleo um dia acabaria e, no futuro, a disponibilidade de combustíveis fósseis seria muito pequena. Por tudo isso, a área de fusão nuclear me interessava. Fiquei na Unicamp até 1982. Em seguida, fui trabalhar com fusão nuclear no Instituto de Estudos Avançados do Centro Técnico Aeroespacial [CTA], em São José dos Campos. Passei também a colaborar, em tempo parcial, com o professor Ivan Nascimento, do IF-USP, na construção de uma máquina chamada tokamak, uma câmara de confinamento magnético de plasma a altas temperaturas. Tinha uma visão muito próxima da dele. Não bastava fazer física no Brasil. Era importante desenvolvermos nossos próprios equipamentos. Em 1983, fiz concurso para livre-docência na USP. Até 1991, morei em São José e ia sempre para a USP. A partir desse ano, fiz concurso para professor titular e passei a trabalhar em tempo integral na USP. Mantive minha residência em São José e montei outro apartamento em São Paulo. Ficava a semana toda na universidade e, no final de semana, ia para São José dos Campos.
A área de fusão nuclear não costuma ser muito noticiada pelos meios de comunicação. Em 1989, houve aquele pleito espetacular, nunca reproduzido, de dois cientistas da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, que diziam ter obtido a chamada fusão a frio, a temperatura ambiente. O senhor concorda com essa impressão?
Sendo bem honesto, a física de plasma não é uma área de fronteira, como a física de altas energias. Não temos algo mais fundamental para descobrir nessa área, que já é bem desenvolvida. Mas os plasmas são sistemas altamente complexos. Na física há duas grandes linhas. A que chamamos de reducionista, que é a de Einstein, relacionada principalmente com a física de altas energias. Essa linha procura leis fundamentais, que expliquem todos os processos naturais, combinando diferentes teorias. É uma área espetacular, estimulante, que é muito valorizada na ciência. Mas existe a física dos sistemas complexos, na qual se encaixa a física de plasmas e os estudos de mudanças climáticas, por exemplo. Essa física usa equações básicas, conhecidas, mas seus sistemas são tão complexos que é muito difícil prever sua evolução. Uma pequena alteração nas condições iniciais pode levar o sistema a resultados muito diferentes. Na década de 1960, havia muita esperança de que a fusão produziria bons resultados e se tornasse uma fonte viável e segura de produção de energia. Mas isso nunca ocorreu. Os físicos da área sempre diziam que era preciso esperar mais 30 anos. A situação virou até piada e gerou muitas críticas. Mas a verdade é que a evolução da pesquisa em fusão nuclear clássica, por meio do confinamento magnético de plasma a altíssimas temperaturas, avançou substancialmente. Entre o começo e o final da década de 1990, foi obtida a fusão nuclear controlada na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, em uma máquina chamada TFTR, e no laboratório europeu JET, no Reino Unido, no qual já trabalhei. O que ainda não conseguimos fazer é produzir, com o processo de fusão, mais energia do que gastamos para manter em funcionamento esses reatores de plasma.
Por que essa barreira não foi vencida?
Para que ocorram reações de fusão e o plasma passe a produzir energia, é preciso atingir uma temperatura acima de 110 milhões de graus Celsius dentro dos reatores. Quando passa da ordem de 2 mil graus, a matéria se ioniza e perde muita energia por radiação. Uso a seguinte analogia para explicar essa questão: é como fazer uma fogueira com lenha molhada ou verde. Ela até queima, mas é preciso botar tanto fogo para que a temperatura seja tão alta e faça a água evaporar que o esforço não compensa. Na fusão, gasta-se muito mais energia do que se produz. Mas, por períodos curtos, essa limitação já foi superada no exterior.
Quão curtos?
Centenas de milissegundos, bem curtos mesmo. Mas um reator de plasma deve funcionar quase ininterruptamente. Retomo a analogia para explicar como a ciência pensa em contornar essa limitação. Para evitar a perda de energia, deveríamos fazer uma imensa fogueira com madeira molhada. Assim, direcionaríamos a chama para o centro da fogueira de tal maneira que a temperatura nessa região atingisse níveis muito elevados antes de a fogueira apagar. É por isso que o Iter, o maior projeto de reator do tipo tokamak, em construção no sul da França, vai ser enorme e custar cerca € 20 bilhões [o Iter pretende demonstrar a viabilidade econômico-científica da produção de energia a partir da fusão nuclear]. Fomos convidados para participar do Iter quando o ministro da Ciência e Tecnologia era o Sergio Rezende, mas o custo era muito elevado. Hoje, os norte-americanos acham que podem obter a fusão com máquinas menores e baratas, mas isso ainda não foi demonstrado.
Qual foi a sua maior contribuição no Brasil na área de física nuclear?
Acho que foi, ao lado do Ivan Nascimento, construir na USP em 1981 o primeiro tokamak da América Latina, o TBR-1, que funcionou até 1995. Ele foi muito importante para formar pessoas e chamamos um pouco a atenção internacional com nossos trabalhos. Como nossa máquina era pequena, sempre procurávamos nichos de pesquisa nos quais poderíamos produzir alguma coisa interessante até para os laboratórios mais avançados. A estratégia deu certo resultado e, em 1984, ganhei o prêmio Manuel Sandoval Vallarta, do Instituto Internacional de Física Teórica (ICTP), na Itália. Infelizmente, por falta de apoio a grandes projetos, a física de plasma tem perdido recentemente pesquisadores qualificados para o exterior.
Ricardo Galvão em perfil
Idade: 72 anos
Especialidade: Física de plasmas
Instituição: Universidade de São Paulo
Formação: Graduado em engenharia de telecomunicações pela Universidade Federal Fluminense (1969), mestrado em engenharia elétrica pela Universidade Estadual de Campinas (1972) e doutorado em física aplicada de plasmas pelo Massachusetts Institute of Technology (1976)
Produção: 219 artigos em revistas científicas e 42 capítulos de livros