Atacante tornou público seu período de depressão após a Copa do Mundo e como uma psicóloga esportiva “salvou sua vida”. Relato do jogador ajuda a trazer a pauta da saúde mental para o esporte brasileiro.Em março, o atacante Richarlison, camisa 9 da seleção brasileira na última Copa do Mundo e atualmente no clube inglês Tottenham, disse à ESPN Brasil que a terapia salvou a sua vida e sua carreira no futebol.

“Sabemos o quanto as pessoas são preconceituosas quando dizemos que estamos procurando ajuda [psicológica]”, disse o jogador de 26 anos.

“Eu falo sobre isso porque salvou minha vida. Eu estava no fundo do poço. Só os jogadores sabem a pressão que sofremos, não só dentro de campo, mas também fora dele. Hoje eu posso falar, procure um psicólogo, você que está precisando, procure porque é legal você se abrir assim, você estar conversando com a pessoa”, alertou o Pombo, como é carinhosamente chamado pelos torcedores brasileiros.

Os comentários de Richarlison foram apenas o exemplo mais recente de um atleta falando publicamente sobre sua saúde mental, algo que tem se tornado mais frequente nos últimos cinco anos. No Brasil, porém, essas declarações não são tão comuns como em outros lugares.

De acordo com um artigo de 2023 de Tânia Maria de Araújo e Monica Torrenté publicado na Revista do SUS, os esforços para melhorar os tratamentos de saúde mental em todo o país são prejudicados pela falta de acesso a serviços do tipo.

Em um capítulo do livro Mental Health in Elite Sport: Applied Perspectives from Across the Globe (Saúde mental em esportes de elite: perspectivas aplicadas em todo o mundo), oito autores reuniram informações sobre a saúde mental no esporte brasileiro e revelaram o impacto que fatores socioeconômicos, como o acesso à nutrição e ao saneamento adequados, têm sobre os jovens jogadores.

Apesar disso e da enorme popularidade do futebol no Brasil, equipes multidisciplinares que atendem às necessidades técnicas, táticas, psicológicas e de saúde mental de jogadores e técnicos não são comuns no país. Os psicólogos do esporte não costumam fazer parte do quadro de funcionários dos times principais e, embora sejam obrigatórios nas categorias de base, muitas vezes estão sob enorme pressão, gerenciando vários times sozinhos. Esse, no entanto, não é um problema exclusivo do Brasil, mas também em muitas escolas e clubes de futebol em todo o mundo.

“Essa questão é maior do que o futebol”, disse Cauan de Almeida, técnico do América Mineiro, à DW. E no América, clube onde Richarlison começou sua carreira, Almeida e sua equipe estão fazendo o possível para ajudar os jogadores a se desenvolverem emocionalmente dentro e fora do campo.

Nova geração, novos valores

Almeida, de 35 anos, faz parte de uma nova geração de técnicos no Brasil, que desenvolveu suas habilidades na escola do clube e agora está trazendo esses valores para o time principal. Ele veio da base do América e aplica valores como resiliência, respeito, coragem, responsabilidade e pertencimento a um grupo ao treinamento técnico e tático.

Isso não quer dizer que o foco do clube não seja vencer. Como um dos clubes mais tradicionais do país, o América Mineiro está desesperado para voltar à primeira divisão, mas Almeida e sua equipe sabem que há valor ainda maior em criar um significado além da vitória em campo.

“Entendemos que, se cumprirmos esses valores e essa filosofia, no dia a dia poderemos oferecer algo mais consistente aos nossos jogadores como um grupo. Quando trazemos esses valores para os jogadores, estamos colocando esses valores na cabeça deles, não apenas para o nosso clube, mas também para nossas famílias. Estamos inspirando novos líderes. Eles serão melhores jogadores e melhores pessoas e, em casa, poderão passar esse conhecimento para suas famílias”, explica o jovem técnico.

“Mente sã em corpo são”

“Entendemos que é muito importante para o nosso time, mas também para o futebol brasileiro como um todo”, afirma Almeida. “Nós, como líderes do processo, também lidamos com essa situação. Podemos sentir o que o Richarlison sentiu. Precisamos entender a pressão do resultado e como lidar com ela quando você perde o jogo. Precisamos estar emocionalmente fortes.”

Para esse objetivo, Almeida trabalha com um dos principais psicólogos esportivos do país para orientar a si mesmo e seus jogadores. Ao ser perguntado se essa é uma prática comum no futebol do país, a resposta dele é reveladora: “Acho que não, pois minha psicóloga me disse que sou o primeiro técnico de futebol que ela atende.”

Legado do Pombo

O maior desafio para o futebol brasileiro é deixar de lado a perspectiva de que ser jogador brasileiro significa possuir uma habilidade que seria puramente um dom natural, e passar para uma que reconheça a importância da pessoa e de sua mente.

“Também entendemos que, quando trabalhamos com esses valores, deixamos um legado para o clube e os jogadores”, explica Almeida.

Ele quer que esses valores permaneçam no coração do clube para que, quando chegar o dia em que ele não for mais o técnico, o fruto do trabalho ainda esteja lá, com uma estratégia que permita o desenvolvimento pessoal e profissional duradouro de cada profissional.

Richarlison abriu as portas para essas mudança em sua geração, e Almeida está se certificando de que o América Mineiro vá fazer o melhor para dar sequência. A esperança do técnico é que o futebol brasileiro jogue unido nesse propósito.