15/03/2013 - 15:31
Comparar experiências de realidades diferentes é sempre um risco. A Coreia do Sul é um país do tamanho do Estado de Santa Catarina, com 50 milhões de habitantes e um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 1,5 trilhão. O seu território é ínfimo se comparado ao do Brasil, cuja economia movimenta US$ 2,3 trilhões por ano, mas tem 200 milhões de pessoas para cuidar. Se pensarmos nas bacias hidrográficas coreanas e nas características dos seus rios, a disparidade se acentua.
Somados, os quatro principais rios coreanos têm 1.266 quilômetros de extensão, enquanto só o Rio Amazonas tem 6.992 quilômetros. No Brasil existem inúmeros rios com mais de 1.000 km de extensão. Portanto, a tarefa de revitalizar as bacias em um país pequeno é bem mais fácil. Mesmo assim, respeitando as particularidades de cada nação, a história recente da Coreia do Sul tem muito para inspirar a conservação da água e dos rios brasileiros. Sobretudo porque a Coreia do Sul era um país instável e mais pobre que o Brasil na década de 1970.
Houve uma mudança de mentalidade. Depois de décadas de crescimento econômico acelerado, que gerou muitos impactos e poluição, há dez anos a Coreia do Sul passou a adotar um plano de governo voltado à sustentabilidade. Um de seus primeiros projetos de impacto internacional foi a recuperação do riacho Cheonggyecheon, que corta o centro de Seul, hoje transformado num parque turístico e de lazer.
Com o fim da guerra entre as duas Coreias, em 1950, refugiados da Coreia do Norte ocuparam as margens do Cheonggyecheon, utilizando-o como esgoto, desfigurando o rio de modo similar à degradação imposta ao Rio Tietê na capital de São Paulo. Sucessivos governos mais preocupados com a economia, carentes de vontade e de tecnologia para recuperar os recursos naturais, investiram na construção de vias expressas no centro da capital, que acabaram tapando o canal do Cheonggyecheon. Em 1978, uma onda de viadutos e pistas elevadas praticamente matou o rio.
Em julho de 2003, em meio a graves problemas de poluição do ar, a segurança das pistas e dos viadutos havia deteriorado e estava comprometida. O custo de uma nova reforma era estimado em 100 bilhões de wons (cerca de R$ 180 milhões), prevendo-se a interdição das vias por três anos. Em contrapartida, se os viadutos fossem removidos e a revitalização do rio empreendida, o tempo de execução das obras seria menor e as vantagens para a população, maiores.
Em 2005, todas as pistas que cobriam seis dos oito quilômetros do rio foram removidas, o esgoto despejado foi todo tratado, mais água foi captada e injetada no riacho (já, então, com trechos secos) e um sistema de controle de enchentes foi implantado, junto com áreas de lazer ao longo das margens. O planejamento do trânsito evitou maiores prejuízos ao tráfego da cidade, mesmo com a remoção das pistas, os moradores e comerciantes que ocupavam a área foram realocados e a população recebeu com entusiasmo a recuperação do rio.
Projeto Quatro Rios
Enquanto a revitalização do Cheonggyecheon virava uma atração turística, o governo começou a estudar um plano ambicioso para a restauração dos quatro grandes rios do país, o Han, oGeum, o Nakdong e o Yeongsan, junto com todos os seus afluentes. O objetivo era controlar secas e enchentes – um flagelo no interior – e revitalizar os ecossistemas e a qualidade da água.
“Hoje podemos dizer que conseguimos acabar com a falta de água e controlamos as enchentes”, explicou à PLANETA o engenheiro Heekyu Jung, diretor do Escritório Nacional de Recuperação de Rios, o órgão especialmente criado para executar o plano. “Nós limpamos a água e os afluentes antes de desaguarem nos rios principais, e melhoramos a rede de esgotos. Tínhamos várias estações de tratamento de qualidade regular, mas hoje temos 1.281, de alta qualidade”, diz.
O índice pluviométrico anual da Coreia do Sul é de 1.277 mm, bem maior do que a média mundial de 807 mm. No entanto, a incidência de chuvas é sazonal e 70% ocorrem na curta temporada de chuvas, o que resulta em enchentes severas no verão e secas no inverno e outono – um problema que tende a piorar numa conjuntura de mudanças climáticas. No passado, cerca de 74% dos 130 bilhões de metros cúbicos de rios e lagos sul-coreanos evaporavam ou fluíam direto para o mar; só 26% da água permanecia em boas condições de uso. A população sofria com a falta do recurso.
Enchentes controladas
Para controlar as enchentes e o depósito de sedimentos nos leitos, os quatro rios foram escavados – mesma estratégia adotada no Cheonggyecheon – e vários diques foram recuperados e modernizados. De 2009 a 2011, 450 milhões de metros cúbicos de sedimentos foram dragados, o que baixou o nível das águas dos tributários e dos quatro rios de dois a quatro metros. Depois do desassoreamento, mesmo com chuvas extraordinárias, como as de 2011, o nível de água nas enchentes diminuiu consideravelmente, em comparação com os anos anteriores.
Dezesseis barragens móveis e duas represas foram construídas para garantir o abastecimento de água na seca, aumentando a margem de operação dos reservatórios para a agricultura e ajudando a controlar as enchentes. Algumas ainda estão em obras. Em cada barragem foi implantada uma pequena central hidrelétrica, com capacidade de produção de 800 a 5.000 quilowatts/hora.
Para revitalizar a saúde dos rios, estações de tratamento de água foram implantadas e modernizadas, com a missão de manter baixa a demanda de oxigênio bioquímico das águas. “Estamos fazendo novos usos de nossas represas e estações, que agora são monitoradas em tempo real”, diz Jung, referindo-se ao sistema de telemonitoramento permanente da qualidade da água instalado nos quatro rios. A intervenção humana na revitalização dos rios degradados foi intensa.
Outra preocupação foi a restauração do habitat de plantas e animais selvagens. Foram criadas escadas e passagens para peixes em barragens, assegurando as migrações entre montante e jusante. Onze espécies de peixes ameaçadas de extinção foram recuperadas. Áreas de lazer, de cultura e de esporte foram criadas no entorno das margens para reaproximar a população dos rios. Ao todo, foram construídos 1,7 mil quilômetros de ciclovias, 65 campos de futebol, 45 campos de beisebol e 1,5 mil áreas de camping.
Em termos econômicos, o Escritório Nacional de Recuperação destaca a criação de 340 mil empregos durante o projeto, entre 2008 e 2012, e o investimento de US$ 18 bilhões (cerca de R$ 36 bilhões) na revitalização – quatro vezes mais do que o projeto de transposição do Rio São Francisco, no Brasil, de acordo com a revisão de custos efetuada em 2013, que bateu em R$ 8,2 bilhões. Apesar do investimento, os sul-coreanos se lamentam: “Deveríamos ter investido muito mais em prevenção, nos últimos dez anos, para gastar bem menos com a recuperação”, ressalta Heekyu Jung. Embora tardio, o investimento acabou com o prejuízo das enchentes e fomentou a agricultura e a produção de energia.
Exemplo brasileiro
Seria possível restaurar os rios brasileiros, como a Coreia do Sul fez? “Existe tecnologia disponível para isso”, afirma o professor José Galizia Tundisi, um dos maiores especialistas brasileiros em recuperação de ecossistemas aquáticos, atual secretário de Desenvolvimento Sustentável, Ciência e Tecnologia de São Carlos (SP). “O nosso problema é conseguir resolver as questões sociais: os esgotos clandestinos, as emissões da indústria e da agricultura e a educação da população para não poluir rios, além de organizar a gestão por bacias e sub-bacias”, sintetiza para a PLANETA. Não é uma tarefa fácil.
De acordo com Tundisi, os problemas dos rios brasileiros não são muito diferentes dos da Coreia do Sul e do resto do mundo. O Brasil já sofre com as mudanças climáticas, com a duradoura falta de saneamento e uma poluição crescente nas águas. Só 38% do esgoto gerado no país recebe algum tipo de tratamento. A falta de planejamento, a desobediência das leis e a ocupação desordenada induziram à degradação das várzeas e à destruição das matas ciliares, aumentando a destruição das enchentes, o assoreamento e a perda da biodiversidade.
Além de melhorar a educação dos brasileiros, a revitalização dos rios e mananciais, segundo especialistas como Tundisi e Glauco Kimura, coordenador do Programa Água para a Vida do Fundo Mundial da Vida Selvagem, passa pelo fortalecimento dos Comitês de Bacias que surgiram com a promulgação da Lei das Águas, em 1997, e pela integração das várias secretarias que trabalham com a gestão de recursos hídricos. “Em São Paulo, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente fazia projetos para recuperar as várzeas dos afluentes das represas Billings e Guarapiranga enquanto a Secretaria de Obras contratava a abertura de canais nos afluentes e removia várzeas”, lamenta Tundisi.
Apostar nos comitês e no envolvimento de toda a administração pública e a sociedade pode dar resultados, mostra a experiência da bacia do Rio São João, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. O complexo dos Lagos Fluminenses, onde se destacam a Lagoa de Araruama e o Rio Una, sofre com o despejo de esgoto e o desmatamento há séculos. O mau cheiro espantava os turistas, os peixes desapareceram, as enchentes se tornavam frequentes e, durante a alta temporada de verão, quando o número de visitantes saltava de 600 mil para 2 milhões, invariavelmente faltava água.
“Por meio do fortalecimento do Comitê de Bacia, a sociedade civil encontrou um espaço para se posicionar e buscar soluções para a degradação ambiental”, diz Kimura. “Os governos se viram obrigados a tomar atitudes para reverter a poluição da Lagoa de Araruama e oferecer saneamento. Conseguimos que as concessionárias de esgoto alterassem os contratos para promover o tratamento dos dejetos em prazo muito menor”, explica o especialista.
Em 2001, quatro novas estações de tratamento passaram a manejar cerca de 70% do esgoto da região. O antes assoreado Canal de Itajuru, que liga a lagoa ao mar, foi dragado e alargado.As lagoas, antes impróprias para banho, já podem ser utilizadas, e os pescadores voltaram a encontrar peixes. A falta de água no veraneio dos turistas acabou.
Para um país que detém 13,7% da água de superfície do planeta, sem dúvida é pouco. Mas é melhor começar a se mexer tarde do que ficar só reclamando.