Sistema de entrega anônima de crianças começou em mosteiros há 200 anos e foi extinto no Brasil em 1950. Recurso ressurgiu em países desenvolvidos.No dia 7 de setembro, um recém-nascido foi encontrado abandonado em uma caixa de frutas no interior do Mato Grosso do Sul. Infelizmente, não é um caso único. Hoje há mecanismos legalizados para que uma mãe entregue seu filho para adoção, se assim desejar.

Em um passado não muito distante, a alternativa ao mero abandono dos bebês por quem não queria criá-lo era deixá-lo nas chamadas “rodas dos expostos”. Esse formato, atrelado às chamadas Santas Casas de Misericórdia, teve origem em Roma na Idade Média – e só deixou de operar assim na São Paulo do século 20.

Conforme explica a historiadora Maria Luiza Marcílio em seu livro História Social da Criança Abandonada, o Brasil foi “o último a acabar com o triste sistema da roda dos enjeitados”. A roda que funcionou na capital paulista foi inaugurada há 200 anos, em 1825 e, ao longo de 125 anos, acolheu 4.580 bebês abandonados pelos pais.

O dispositivo, de funcionamento simples, era uma roda circular com um bocal de cerca de 50 centímetros – que ficava voltado para a rua, ao lado da porta da instituição. Dentro, havia um pequeno colchão. A pessoa deixava ali o filho rejeitado, girava uma manivela que fechava a frente e, girando, abrisse o acesso do lado interno. E tocava um sino, que avisava aos responsáveis, geralmente uma freira, que havia uma criança deixada para os cuidados.

15% dos bebês eram abandonados

O primeiro enjeitado foi deixado ali em 4 de outubro de 1825, conforme relata o historiador Antonio Barreto do Amaral, em seu Dicionário de História de São Paulo. Para manter a estrutura, a Câmara passou a destinar para a instituição 12,5% de seu orçamento.

O sistema foi criado para resolver um problema grave. Segundo levantamento de Marcilio, naquele início de século 19, 15,9% de todos os bebês nascidos livres em São Paulo eram abandonados pelas ruas e córregos. A grande maioria não sobrevivia.

No Brasil, o modelo era já praticado em Salvador, que inaugurou a primeira roda da colônia, em 1726; no Rio de Janeiro, desde 1738, e em Recife, em 1789. Ao longo do século 19, depois da instalada em São Paulo, outras dez começaram a funcionar no território brasileiro.

“A roda foi instituída para garantir o anonimato do expositor, evitando-se […] o mal maior, que [na visão daquele contexto] seria o aborto e o infanticídio”, pontua Marcilio, em seu livro. “Além disso, a roda poderia servir para defender a honra das famílias, cujas filhas teriam engravidado fora do casamento.”

A mortalidade era alta, chegando a 30%. “O destino era muito triste, muitas morriam mesmo”, comenta o escritor Manuel Filho, que pesquisou sobre o assunto para escrever o livro A Roda da Vida. No geral, os bebês abandonados já chegavam muito debilitados e desnutridos.

Quando a criança era recolhida, logo recebia o batismo. Então ela era registrada em um livro, com informações sobre eventuais pertences que haviam sido entregues junto com o bebê.

Marcílio conta que esses nenéns recebiam um nome do calendário de santos da Igreja Católica ou “nomes poucos usuais na sociedade de então, inspirados em nomes latinos do império romano ou da Grécia antiga”. Ela cita Dulcinéia, Ironildes, Giselia, Derivaldo, Afra e Florisvaldo como sendo “nomes fantasiosos e fora do comum” que aparecem nos registros.

Pagava-se por amas de leite

Mas as Santas Casas não contavam com estrutura para abrigar as crianças como se fossem um orfanato. Então, as religiosas logo buscavam alocar o bebê na casa de uma ama de leite. Esta tinha a guarda da criança até os 3 anos de idade. E havia uma remuneração para isso. Quem acolhesse o menor até os 7 anos também recebia “um estipêndio pequeno”, como explica a historiadora.

“A partir daí poder-se-ia explorar o trabalho da criança de forma remunerada, ou apenas em troca de casa e comida, como foi o caso mais comum”, ressalta Marcílio.

A historiadora diz que as amas eram “em sua quase totalidade, mulheres extremamente pobres, solteiras, ignorantes e residentes nas cidades”. E que o sistema tinha alguns abusos, como o caso de mães muito pobres que deixavam os filhos na roda e depois se candidatavam para serem amas dos mesmos – ganhando assim a remuneração prevista.

Quando terminava o período do salário, era comum que as crianças fossem devolvidas às instituição. Como as Santas Casas não tinham como abrigá-los, elas iam para as ruas – tornavam-se mendigos e prostitutas, muitos vivendo de esmolas ou de pequenos furtos.

Marcílio afirma que, para tentar diminuir esse problema, as Santas Casas procuravam famílias que aceitassem receber esses menores na condição de aprendizes, explorando essa mão de obra. Então, os meninos muitas vezes iam trabalhar como ferreiros ou sapateiros, e as meninas se tornavam empregadas domésticas.

Origem medieval

O mecanismo foi trazido ao Brasil por conta da colonização portuguesa. Em Lisboa, a Santa Casa de Misericórdia passou a contar com o sistema em 1498.

De acordo com as pesquisas de Marcílio, esse tipo de estrutura cilíndrica era comum em mosteiros medievais pela Europa. Serviam para que os religiosos recebessem, de forma anônima, doações de alimentos e objetos. Oportunamente, também ocorria que pais deixassem ali filhos rejeitados.

A primeira instituição a contar com uma roda própria para receber crianças abandonadas foi o antigo Hospital do Santo Espírito, em Roma – na época, chamado de Santa Maria in Sassia. No início do século 13, o papa Inocêncio 3º (1161-1216) determinou que o mecanismo fosse instalado ali. Ele estava preocupado com o número alto de bebês encontrados mortos no Rio Tibre, porque ali eram abandonados.

Desde a implantação era completamente vedada “a busca de informações” sobre quem ali deixasse uma criança, conta a historiadora Marcílio.

Hoje em dia

Atualmente há mecanismos jurídicos e legais para quem deseja encaminhar um recém-nascido para a adoção. As regras constam de um documento do Conselho Nacional de Justiça, denominado Manual Sobre Entrega Voluntária, publicado em 2023.

O documento trata de todo o passo a passo, desde a manifestação do desejo até a entrega efetiva aos serviços sociais.

“Então, atualmente temos um processo perante as varas da Infância e Juventude, com ampla defesa, contraditório e devido processo legal, diferentemente do passado, quando existia a roda dos expostos”, compara o advogado Ariel de Castro Alves, membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Pelo procedimento, salienta Alves, “as mães que entregam seus filhos legalmente […] claramente não responderão a inquéritos e processos por abandono de recém-nascido ou de incapaz”.

“A mãe é ouvida por equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, há a destituição legal do poder familiar e não há punição para a mãe”, complementa a jurista Michele Asato Junqueira, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie e coautora do livro Princípios Norteadores do Direito da Criança e do Adolescente.

Alves ainda lembra que na legislação atual, as crianças, mesmo após adotadas, podem ter acesso a históricos, prontuários, identidade de pais e familiares biológicos. E conhecer o processo a que foram submetidos.

“Na época da roda dos expostos, isso era tabu. Os adolescentes, jovens e adultos não tinham acesso aos seus históricos e arquivos, mesmo quando queriam ter acesso. Isso configurava uma grave violação de direitos”, diz o advogado.

Ele comenta que no modelo da roda dos expostos, muitas crianças acabavam não sendo preparadas para autonomia e mercado e trabalho e terminavam nas ruas, “excluídos socialmente e abandonados”.

Rodas contemporâneas

Versões modernas da roda dos expostos, contudo, têm surgido em muitos países.

“Identifica-se a presença de novas rodas dos expostos em países como a Alemanha, Bélgica, Coreia do Sul, Estados Unidos e Japão”, pontua Junqueira. Em Hamburgo, na Alemanha, o sistema — chamado no país de babyklappe — completou 25 anos de funcionamento.

Manuel Filho vê espaço para esse tipo de iniciativa por causa do aumento de movimentos contra o aborto em países desenvolvidos. Ele cita o caso dos Estados Unidos, onde o direito ao aborto deixou de ser uma garantia nacional desde decisão da Suprema Corte de 2022.

“No Brasil, se discute a implantação, rejeitada por muitos, de instituição do parto anônimo, para se garantir a entrega da criança para a adoção, sem a identificação da mãe. Um dos principais argumentos contra é justamente a impossibilidade de se garantir à criança, na fase adulta e se for de seu interesse, conhecer a sua origem biológica”, comenta Junqueira.

Alves lembra que, com ou sem roda dos expostos, a questão da inclusão social plena das crianças no Brasil segue sendo um problema de difícil resolução. “Na prática, a maioria das crianças e adolescentes do país estão expostos à miséria, fome, negligências, abandonos e violências, na maioria, por situações praticadas por seus próprios pais, mães e responsáveis legais, ou pelos poderes públicos, que se omitem nas políticas públicas.”