Estamos habituados a pensar na história em termos eurocêntricos, mas essa visão está passando por revisões constantes nos últimos tempos. Uma nova publicação de uma autora britânica oferece uma contribuição importante nesse sentido: On Savage Shores (“Em Praias Selvagens”, em tradução livre, publicado pela Knopf), escrito pela drª Caroline Dodds Pennock, professora sênior de História Internacional na Universidade de Sheffield. A obra desafia a narrativa tradicional de que a história global moderna começou quando o “velho mundo” encontrou o “novo” – quando Cristóvão Colombo “descobriu” a América em 1492.

O livro destaca como, quando a Europa supostamente “descobriu” as Américas, dezenas de milhares de indígenas americanos fizeram simultaneamente a jornada através do Atlântico e influenciaram o curso da civilização europeia, assim como a Europa também mudou a América.

Pesquisadora de histórias indígenas, a drª Dodds Pennock é a única historiadora do Reino Unido especializada na história do povo asteca-mexica. On Savage Shores é um marco em seu trabalho para iluminar o impacto dos astecas, maias, totonacs, inuítes e outros – escravos, diplomatas, exploradores, servos, comerciantes – que viajaram para a Europa entre 1492 e a fundação de Jamestown, na costa leste dos atuais Estados Unidos, em 1607.

Capa de “On Savage Shores”. Crédito: Knopf

Histórias ainda desconhecidas

“Esse é um período da história que a maioria das pessoas pensa que já conhece bem – o mundo de combates e pedaços de bacalhau dos Tudors e a chamada ‘Era de Ouro’ da Espanha –, mas quantas pessoas sabem que houve um rei brasileiro na corte de Henrique VIII, que o sacrifício humano foi ridicularizado na corte espanhola, ou que dezenas de milhares de indígenas foram escravizados na Espanha, em Portugal e outros lugares?”, disse a drª Dodds Pennock. “Minha esperança é que este livro conte suas histórias, e muitas outras, de uma forma que transforme a compreensão pública desse famoso período da história.”

A autora também espera que seu novo livro esteja envolvido nas conversas atuais sobre migração, identidade e império e destaque as experiências daqueles que viajaram para novas terras para encontrar um mundo muito diferente e ter um efeito profundo nas Europas que eles encontraram.

Os povos indígenas do continente americano foram parte vital das redes que criaram o mundo cosmopolita que conhecemos hoje, levando para a Europa como chocolate, tabaco, batata e tomate. Os viajantes eram tradutores e diplomatas, representando seus povos e nações para coroas e tribunais. Muitos deles foram para a Europa como membros da família, amigos e servos, e seus corpos e culturas foram exibidos para a curiosidade e entretenimento dos europeus, mas na maioria das vezes, eles foram escravizados, sequestrados e enviados para longe de suas casas, e forçados à escravidão no coração do império.

A inuíte Arnaq e seu filho Nutaaq, em pintura de John White feita em 1589. A história de Nutaaq é abordada no livro de Dodds Pennock. Crédito: John White/Wikimedia Commons

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O livro explora histórias como a de Nutaaq, um pequeno bebê inuk (inuíte), representado em pinturas do governador colonial inglês John White (1540-1593). Levado para a Inglaterra em 1577, ele foi exposto em um pub londrino, mas morreu tragicamente após apenas oito dias na capital inglesa. Ele foi enterrado em uma cova sem identificação em St Olave’s, uma pequena igreja que ainda existe na cidade.

On Savage Shores nos mostra como casos como a de Nutaaq não desaparecem da história, apenas das partes que vemos e ouvimos regularmente, e são significativas por direito próprio, assim como na forma como moldaram nossa compreensão de um passado mundial.

“Esses viajantes indígenas remodelam nossa imagem do início da Europa moderna e as formas como nosso mundo foi feito; eles fazem parte de uma grande história global”, comentou a drª Dodds Pennock. “Meu trabalho analisa essas visões de mundo e culturas, que teve um impacto profundo na civilização europeia, através de sua literatura sobrevivente, poesia, registros legais e relatos de testemunhas oculares.” Já fica a dica de tradução para as editoras brasileiras.