Em 7 de abril de 1994, teve início o massacre que deixou mais de 1 milhão de mortos no país africano. Hoje sobreviventes e agressores vivem lado a lado nas mesmas comunidades.Ruanda lembra neste domingo (07/04) dos 30 anos do genocídio que chocou o mundo. Mais de 1 milhão de pessoas – a maioria da minoria étnica tutsi, mas também moderados hutus que tentaram proteger os tutsis – foram sistematicamente assassinadas por extremistas hutus durante um massacre que durou 100 dias.

“Nunca esqueceremos das vítimas desse genocídio”, disse o chefe da ONU, António Guterres, em comunicado. “Tampouco esqueceremos da bravura e da resiliência daqueles que sobreviveram”.

O tutsi Freddy Mutanguha é um dos sobreviventes. Ele tinha 18 anos na época do genocídio e estava de férias escolares em sua aldeia Mushubati, na cidade de Kibuye, a 135 quilômetros da capital de Ruanda, Kigali.

Extremistas hutus estavam caçando jovens suspeitos de se simpatizarem com a Frente Partidária de Ruanda (RFP), um grupo rebelde de maioria tutsi liderado por Paul Kagame, que viria a se tornar o presidente de Ruanda.

Temendo o pior para o filho, a mãe de Freddy o aconselhou a se esconder na casa da família de um amigo hutu. Enquanto Freddy estava seguro, sua família subornou um grupo de extremistas hutus com dinheiro e álcool para se manter viva.

Porém, em 14 de abril, a família ficou sem dinheiro e os extremistas assassinaram brutalmente os pais de Freddy e quatro de suas irmãs. Apenas sua irmã Rosette conseguiu escapar. “Eu podia ouvir os gritos de minhas irmãs enquanto eram mortas brutalmente”, conta Freddy à DW. “Elas imploraram aos agressores que poupassem suas vidas, prometendo que nunca mais seriam tutsis, mas foi em vão.”

“Eles jogaram minhas irmãs em um poço próximo, algumas ainda estavam vivas, e acabaram de matá-las atirando pedras. Meus pais foram mortos a facadas.”

Freddy permaneceu escondido, pois os assassinos continuaram a procurá-lo. “Seria suicídio se eu saísse do meu esconderijo”, relata, acrescentando que suas irmãs mais novas tinham apenas 4, 6, 11 e 13 anos quando foram mortas.

Além de perder seus pais e quatro irmãs, mais de 80 pessoas da família de Freddy foram assassinadas no genocídio.

Alguns dos assassinos que mataram os parentes de Freddy foram libertados em um acordo que permitiu que os criminosos cumprissem metade de suas sentenças em troca de informações vitais para os promotores sobre os suspeitos e o local onde as vítimas foram abandonadas. Os líderes dos massacres permanecem na prisão.

Freddy, que atuou como ex-vice-presidente do IBUKA, um grupo de sobreviventes do genocídio de Ruanda, é agora diretor do Memorial do Genocídio de Kigali, onde estão enterradas cerca de 250 mil vítimas deste período.

Cura emocional: um processo difícil para os sobreviventes

Apesar dos esforços de Ruanda para promover a reconciliação entre os sobreviventes e os autores do massacre, a jornada para a cura emocional tem sido um caminho tortuoso para sobreviventes como Freddy e sua irmã Rosette.

“Os agressores não costumam contar toda a verdade, o que é um retrocesso nos esforços de reconciliação, além de ser perturbador para os sobreviventes”, afirma Freddy, acrescentando que um dos assassinos de sua família ocultou muitas informações. “Ele foi libertado depois de cumprir 15 dos 25 anos a que foi condenado apenas pelas poucas informações que compartilhou com os promotores”, lamenta. “Temos que conviver com isso, afinal nossos entes queridos nunca mais voltarão.”

No entanto, Freddy reconhece que Ruanda fez um progresso significativo na reconciliação. Essa constatação é também compartilhada por Phil Clark, professor de política internacional na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) de Londres, que pesquisa os acontecimentos em Ruanda nos últimos 20 anos.

“Ruanda fez enormes progressos em termos de reconciliação pós-genocídio, se considerarmos que milhares de agressores condenados voltaram a viver atualmente nas mesmas comunidades onde cometeram os crimes, lado a lado com sobreviventes do genocídio”, afirma Clark. “A maioria dessas comunidades é pacífica, estável e produtiva, e o progresso que Ruanda fez é evidente”.

“Muitos analistas previram que Ruanda passaria por novos ciclos de violência pós-genocídio, como é o caso da maioria dos países vizinhos”, acrescenta o especialista.

Redes sociais dificultam a reconciliação

Os sobreviventes tiveram de superar mágoas e trabalhar junto com os agressores, relata Freddy. No entanto, a diáspora continua sendo o principal obstáculo para a unidade dos ruandeses.

“Aqueles que moram em outros países são notórios por espalharem informações polarizadoras nas redes sociais e para suas famílias, o que dificulta os esforços de reconciliação, especialmente entre os jovens que sabem pouco sobre o que aconteceu há 30 anos”, observa Freddy.

Clark também concorda que o maior desafio para a reconciliação agora está na diáspora ruandesa, que não participou dos importantes processos de reconciliação em sua terra natal. “As dinâmicas interétnicas mais destrutivas ocorrem atualmente entre ruandeses que vivem na América do Norte, Europa Ocidental e outras partes da África”, diz. “A próxima fase crucial da reconciliação precisa acontecer nessas comunidades fora de Ruanda.”

Repatriação dos refugiados de Ruanda

Victoire Ingabire, a crítica mais proeminente do presidente Paul Kagame, diz que a reconciliação ainda é um sonho distante e que, para alcançá-la, todos os refugiados ruandeses ao redor do mundo precisam ser repatriados.

“Ainda há muitos refugiados ruandeses, especialmente nos países vizinhos, que devem ser repatriados para que uma reconciliação genuína aconteça”, disse Ingabire em uma mensagem de Ano Novo. “Vivemos em paz, mas a reconciliação ainda é distante e há uma profunda desconfiança entre os ruandeses”.

“O governo de Ruanda também está preocupado com os refugiados dos países vizinhos que decidiram pegar em armas e lutar contra ele. Esse problema nunca terá fim a menos que nós, que estamos dentro do país, nos unamos e nos reconciliemos primeiro”, concluiu Ingabire, que se referia aos rebeldes das Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR), um grupo rebelde de etnia hutu.

Há muito tempo, Kagame considera as FDLR uma ameaça existencial à nação. O grupo é classificado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos. A existência contínua da FDLR, que supostamente está sendo tolerada pelo governo do país vizinho, Congo, levou a acusações de que a Ruanda apoia grupos rebeldes adversários, como o movimento M23. O governo do país nega essas acusações.

O recente aumento dos combates criou sérias tensões entre Kigali e Kinshasa – incluindo ameaças de guerra por parte do presidente congolês, Felix Tshisekedi – o que sugere que as lacunas no processo de reconciliação representam uma séria ameaça à segurança de toda a região, mesmo 30 anos após o genocídio.

Reconstruindo vidas, restaurando a esperança

Houve uma infinidade de esforços – por parte do governo, da sociedade civil e dos cidadãos comuns – para superar o genocídio, mas nem todos fizeram as mudanças necessárias para uma reaproximação.

Clubes de diálogo semanais e associações comunitárias, onde a população discute conflitos passados e presentes, têm sido essenciais para ajudar os ruandeses a se curarem e avançarem de forma positiva.

A situação é muito mais positiva hoje do que há cinco ou dez anos, de acordo com Clark, que acrescenta: “mas a maioria dos ruandeses com quem falo diz que ainda há um longo caminho a percorrer”.

Freddy indica que é importante que o genocídio de Ruanda seja lembrado em todo o mundo. “Recordar o que aconteceu em Ruanda há 30 anos não deve ser algo apenas para os tutsis que sobreviveram ao genocídio, mas também deve servir para que o mundo inteiro aprenda sobre esse crime contra a humanidade”, conclui Freddy.