17/12/2025 - 17:59
Com lei federal própria de transição energética, setor precisa resolver a poluição ambiental e climática, além de encontrar alternativas para trabalhadores, cidades e indústrias.Enquanto caminhava sobre rejeitos de carvão mineral em Urussanga, no sul de Santa Catarina , em 20 de novembro, o pedreiro Sidnei Casagranda, de 55 anos, enumerava as reivindicações da comunidade: um asfalto até a cidade vizinha Lauro Müller; a recuperação do solo; e a despoluição dos rios. “Só isso”, disse rindo, ao se dar conta da complexidade das demandas.
Casagranda mostrava à DW uma “paisagem lunar”, como são chamadas as áreas degradadas pela mineração de carvão: cinza, com buracos que parecem crateras e praticamente sem vida. Ao contrário da lua, no entanto, o cenário incluía poças e cursos de água em tons amarelo e laranja. A coloração resulta da drenagem ácida de mina (DAM), uma reação química que libera ácido e metais tóxicos.
O Rio Carvão, que dá nome à comunidade de Casagranda, ainda sofre com os impactos da mineração mesmo que as minas na região tenham sido fechadas há anos. A elevada acidez da água praticamente inviabiliza seu uso pela população e compromete a sobrevivência de peixes e outros animais.
Quase todo o carvão do sul de Santa Catarina se transforma em energia elétrica no Complexo Termelétrico Jorge Lacerda (CTJL), em Capivari de Baixo, gerando gases do efeito estufa , que causam o aquecimento global . Segundo um estudo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), o complexo, considerando suas três usinas, foi o maior emissor entre as térmicas brasileiras analisadas em 2024.
O impacto ambiental e climático, do passado e do presente, é um dos maiores desafios da transição energética na região. Soma-se a isso a própria situação da indústria carbonífera, responsável por movimentar cerca de R$ 6 bilhões anuais e por gerar empregos diretos e indiretos – as estimativas variam entre 20 mil e 100 mil.
Há bons motivos para observar o sul de Santa Catarina no contexto da busca por soluções climáticas. Em 2022, uma lei federal criou o Programa de Transição Energética Justa (TEJ) voltado apenas para a região, que deve considerar os impactos ambientais, econômicos e sociais.
Quatro anos após a sanção da lei, a principal medida foi a assinatura do novo contrato com o CTJL que prorrogou o uso da termelétrica até 2040. De acordo com a Diamante Geração de Energia, proprietária do complexo, naquele ano os equipamentos atingirão seu final de vida útil.
Entre gases e subsídios
O setor está trabalhando para “reinventar” a indústria do carvão, afirmou o presidente da Associação Brasileira do Carbono Sustentável (ABCS), Fernando Luiz Zancan. “A ideia é investir em tecnologias para resolver o problema da emissão de gás de efeito estufa . Não é acabar com o carvão, é acabar com o gás de efeito estufa.”
Zancan trabalha há 45 anos defendendo os interesses do setor. Com apoio de políticos do Sul do país, atuou para prorrogar o contrato do CTJL e, neste ano, das outras termelétricas a carvão até 2040.
A SATC, instituição de ensino e negócios da qual Zancan é diretor-executivo, está produzindo uma planta piloto para capturar dióxido de carbono (CO2). O setor também está de olho nas tecnologias chinesas. “O chinês está fazendo algo similar, só que está escalonando. Nós ainda estamos remando na planta piloto.”
Para o Gerente de Transição Energética do Instituto Internacional Arayara, John Wurdig, a lei catarinense é fruto de interesses. “O lobby do setor do carvão criou essa lei falsa da transição energética. A transição energética em Santa Catarina é do carvão mineral para o carvão mineral.”
Na análise de Wurdig, a lei não previu o abatimento das emissões dos gases do efeito estufa. Além disso, o instituto, junto com a Frente Nacional dos Consumidores de Energia (FNCE), questiona os subsídios destinados ao carvão, que giram em torno de R$ 1 bilhão por ano.
De acordo com um estudo do Arayara, entre 2010 e 2024, R$ 12 bilhões foram desembolsados para pagar o carvão consumido em três usinas brasileiras por meio da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Jorge Lacerda recebeu a maior fatia, quase R$ 10 bilhões.
Segundo um relatório da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a conta anual estimada para a nova contratação a partir de 2026 é de 1,89 bilhão. Desse total, pouco mais de R$ 1 bilhão deverá cobrir a compra de 2,4 milhões de toneladas de carvão.
A Diamante, assim como a ABCS, discorda do termo “subsídio” , que é usado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Chama de “um mecanismo financeiro” para viabilizar a manutenção do carvão nacional como fonte energética segura, funcionando como apoio às renováveis.
A empresa citou também um estudo da consultoria Thymos, segundo o qual a CTJL teria evitado que o país gastasse R$ 13,2 bilhões a mais em energia entre 2006 e 2022. A análise considerou um cenário em que o complexo fosse substituído por outras térmicas.
Na avaliação do físico Délcio Rodrigues, diretor-executivo do Instituto ClimaInfo, o Brasil não precisa depender das térmicas a carvão para garantir segurança energética. Além de responderem por 1,9% da eletricidade gerada em 2024, o país vive hoje um excedente de oferta – o que tem levado, inclusive, a cortes na geração das renováveis. “Nesse cenário, não faz o menor sentido investir em energia a partir do carvão. É uma energia cara e suja.”
Justa para quem?
Os trabalhadores do setor foram favoráveis à recontratação do CTJL. Mas, pelo menos até agora, viram poucas iniciativas em direção a uma transição energética justa. Em julho, uma mina foi fechada em Treviso, causando a demissão de cerca de 180 funcionários. “Os trabalhadores não tiveram transição energética justa. Todo mundo fala, mas, na prática, não estamos vendo resultados”, avaliou o presidente do Sindicato dos Mineiros de Siderópolis, Cocal do Sul e Treviso, Leonor José Rampinelli.
Um mês antes, o governo catarinense havia contratado a Fundação Getúlio Vargas (FGV) para desenvolver o Plano de Transição Energética Justa – o estado também aprovou uma lei semelhante a federal. O estudo vai contemplar as questões ambientais e medidas de proteção social e políticas, incluindo trabalhadores, comunidades e economia regional.
A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e da Economia Verde (Semae) informou ter monitorado a situação dos trabalhadores. No entanto, como o estudo ainda está em fase inicial, alegou não haver “diretrizes para orientar a adoção de medidas concretas e baseadas em evidências científicas com relação a esse caso específico”.
Claudemir Sousa foi um dos trabalhadores demitidos. Enquanto grande parte dos ex-funcionários da mina conseguiu recolocação, segundo o sindicato, o mineiro tem feito bicos e distribuído currículos para outras mineradoras.
O trabalho é duro, ele disse. “Tu baixa 70 metros no subsolo e anda mais dois a três quilômetros para chegar na frente de serviço. A ventilação é artificial. Tu cansa mais do que trabalhar na superfície. Sem contar a falta de ergonomia. Cansa para respirar.” Apesar dos desafios e dos riscos, o salário mais alto que das outras empresas da região o atraiu.
Genoir José dos Santos, presidente da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Extração de Carvão do Sul do País (PR/RS/SC), mostra preocupação. “Se não houver empregos que mantenham o mesmo nível financeiro dos trabalhadores, se não houver empresas que façam a movimentação econômica dos municípios onde há a extração do minério, ela deixa de ser justa.”
Enquanto esperam medidas concretas, os trabalhadores buscam melhorar a aposentadoria por meio do Projeto de Lei Complementar 66/2025, apresentado pela deputada Ana Paula Lima (PT). Além do cenário de transição energética, a parlamentar citou os riscos da profissão, como acidentes, doenças respiratórias e exposição a contaminações químicas.
“Também é preocupante a taxa de mortalidade por acidente de trabalho, que é muito mais alta no setor de mineração. Os altos índices de acidente têm reflexo forte na vida das famílias, além de provocarem depressão e traumas nos trabalhadores”, escreveu Lima na justificativa.
Os trabalhadores também esperam pelas ações do governo federal. O Conselho do Programa de Transição Energética Justa está inativo desde o início do governo Luiz Inácio Lula da Silva, há três anos. A DW questionou a Casa Civil, mas não obteve resposta.
Mitigação e outros poluentes
Em 2020, a Engie Brasil criou um grupo de trabalho para avaliar o encerramento das atividades do CTJL até 2025, seguindo a estratégia global da empresa de descarbonização. Pouco antes da aprovação da lei de transição energética, o complexo foi comprado pela Diamante.
A empresa disse investir em projetos de captura de CO2 e mitigar 10% de suas emissões com o aproveitamento das cinzas do carvão na produção de cimento. Justificou a quantidade de gases do efeito estufa por ser a “térmica que mais produz energia térmica, necessária para equilibrar o sistema”.
O 5º Inventário de Emissões Atmosféricas em Usinas Termelétricas, divulgado nesta quarta-feira (17/12) pelo IEMA, mostra um quadro diferente. Em 2024, por exemplo, o CTJL produziu 10% da energia, mas respondeu por 16,7% da emissão de gases de efeito estufa. Já o Complexo Parnaíba, movido a gás natural, gerou 18,6% da energia e emitiu 12,7%. “O Complexo Parnaíba gerou 85% mais que o Complexo Jorge Lacerda e suas emissões foram 25% menores”, analisou a pesquisadora Raíssa Gomes.
As usinas de Jorge Lacerda também lideram outro ranking: são as que mais emitem Óxido de Nitrogênio (NOₓ). Esses gases, em concentrações elevadas, podem gerar problemas ambientais e de saúde pública, segundo o IEMA.
A empresa não contestou as informações do Óxido de Nitrogênio (NOₓ). Mas disse que mantém três estações de medição de qualidade do ar e uma estação meteorológica, cujos dados são enviados aos órgãos ambientais, prefeituras, câmaras de vereadores e demais partes interessadas.
Contaminação de propriedades
Ronaldo Kock Nunes, de 68 anos, possui uma propriedade ao lado do CTJL, onde planta arroz e soja. No início da década de 1990, após fortes chuvas, sua terra foi atingida por rejeitos de carvão que estavam em um dique. Na época, o complexo era de propriedade da Eletrosul. Quase 30 anos depois, ele recebeu uma indenização de R$ 380 mil em um acordo na Justiça.
Nos últimos anos, Nunes e Hélio Garbellotto, que também possui uma propriedade na região, notaram redução na produtividade. Então contrataram especialistas em biologia, geologia e agronomia para avaliar a possível poluição. Os três laudos técnicos detectaram presença da drenagem ácida de mina (DAM), que contaminou o solo e as águas superficiais e subterrâneas.
A bióloga Patricia Figueiredo Corrêa, doutora em ciências ambientais, escreveu que a recuperação das áreas é “praticamente inviável”. “A ausência generalizada de fauna, tanto aquática quanto terrestre, nas propriedades avaliadas constitui evidência contundente de degradação ambiental grave, compatível com os efeitos diretos e indiretos da presença contínua de DAM na região.”
A Diamante disse que tomou conhecimento dos laudos. “Imediatamente a Diamante contratou empresa especializada para avaliar os estudos apresentados, e os contralaudos emitidos por essa empresa concluíram que não há evidências de contaminação do solo originada pelas atividades do Complexo Termelétrico Jorge Lacerda.” A empresa não disponibilizou o documento técnico.
O Ministério Público Federal em Santa Catarina (MPF-SC) abriu um Inquérito Civil Público, no fim de outubro, para avaliar a origem da poluição.
A DW esteve na propriedade de Nunes em novembro. A água de um canal de drenagem, exatamente na divisa entre sua plantação e o CTJL, estava amarelada. A cor era muito semelhante à do Rio Carvão, em Urussanga.
Décadas de recuperação ambiental
Em 1994, o MPF-SC ajuizou a Ação Pública do Carvão (ACP do Carvão) contra empresas mineradoras e a União Federal. Pedia a recuperação dos danos ambientais causados no sul de Santa Catarina.
A sentença é de 2000. Inicialmente, a recuperação do solo deveria ocorrer em três anos, e a dos recursos hídricos, em 10 anos. “Nós estamos há 25 anos e não temos até o momento nenhuma área descomissionada. Descomissionada é considerada área integralmente recuperada”, avaliou a juíza Camila Lapolli de Moraes, da 4ª Vara Federal de Criciúma (SC).
A juíza, no entanto, vê avanços “gigantescos”. “Quando veio essa sentença, no ano 2000, nós tínhamos pilhas de rejeitos, paisagens lunares expostas. A cidade cheirava muito mal. Tínhamos um cheiro de ovo podre. Fora o aspecto negativo para a comunidade.”
Segundo a juíza, uma das principais questões discutidas no Grupo Técnico de Assessoramento à Execução da Sentença (GTA) é a recuperação das águas subterrâneas e profundas. O grupo vive um momento descrito como “freio de arrumação”, para avaliar o que funcionou e o que pode ser melhorado para chegar ao descomissionamento das áreas.
Ao todo, cerca de 6,5 mil hectares de solo e 1,2 mil quilômetros de rios foram impactados até 1989. Segundo o último relatório disponível do GTA, de 2022, 8,85% da área está classificada na categoria rejeito ou estéril exposto, como as “paisagens lunares” da comunidade de Rio Carvão. O relatório, contudo, faz ressalvas. Parte da vegetação introduzida está sobre os rejeitos, com potencial de gerar poluição.
Embora também tenha havido melhoras, a poluição permanece nos rios de três bacias hidrográficas: Araranguá, Urussanga e Tubarão. O Potencial Hidrogeniônico (pH) foi classificado como ruim (menor que 4,5) em 781,7 quilômetros, ou seja, 63% das águas impactadas.
De acordo com o professor de Ciências Ambientais e Engenharia Ambiental e Sanitária da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Carlyle Torres Bezerra de Menezes, com o PH abaixo de 4,5 “não tem nenhuma vida mais desenvolvida, peixe não consegue sobreviver mais”. Além disso, alertou o professor, há outros metais na água que causam preocupação.
Poluição acima dos limites seguros
A bióloga e pesquisadora Graziela Dias Blanco disse que o GTA também não avalia todos os elementos-traço, substâncias químicas capazes de contaminar a biodiversidade e afetar a saúde humana. E criticou a ausência de investigações sobre os impactos diretos na população. “Trata-se de uma única saúde. Não existe separação entre a saúde das pessoas e a do ecossistema. Tudo está interconectado.”
Em sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Blanco constatou que ao menos 65% dos moradores entrevistados da região usavam plantas para alimentação ou uso medicinal em áreas abandonadas pela mineração.
A pesquisadora analisou com mais profundidade a espécie mais mencionada pelos entrevistados – a carqueja (Baccharis sagittalis), usada na preparação de chás. Todas as amostras apresentaram concentrações de cádmio (Cd) e chumbo (Pb) acima dos limites seguros.
A DW perguntou também ao professor Menezes, da Unesc, se, mesmo com a evolução das técnicas de extração e beneficiamento do carvão, o impacto continua. “Sim, porque é inerente à própria condição do ponto de vista das características do carvão, geológica, geomorfológica, hidrológica.”
Para o professor, a transição energética, assim como a recuperação ambiental, precisava ser mais rápida. “Não pode ser postergada sempre, indefinidamente, para 2040, 2050, e a gente não sabe até quando. Ela precisa ser de fato já, com políticas sociais e econômicas de amparo aos trabalhadores.”
“Tiraram o lucro e deixaram o resto para trás”
Sidnei Casagranda nunca trabalhou como mineiro, mas sua vida foi atravessada pela mineração de carvão. Na infância, brincava pegando carona com os caminhões que transportavam o mineral perto de sua casa.
Seu pai trabalhou na mineração, se aposentou por invalidez e morreu aos 49 anos, com pneumoconiose – condição que afeta os pulmões e é conhecida como doença dos mineiros. Um pouco antes da sua morte, uma mina explodiu na região, matando 31 trabalhadores.
Como ex-presidente da associação de moradores de Rio Carvão e como cidadão, Casagranda têm denunciado a poluição na comunidade. Como não vê melhoras, sente “revolta e injustiça”. “Tiraram o lucro e deixaram o resto para trás.” A transição energética será capaz de alterar essa percepção?
Esta reportagem foi produzida com o apoio da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) em parceria com a WRI Brasil.
