Texto e fotos de Johnny Mazzilli, de

Não há fotografia que possa retratar com fidelidade o que os olhos viam ao chegar a , quatro dias após a inundação que, na madrugada de 1° de janeiro, devastou o centro histórico da cidade. Era o primeiro dia em que a visita era permitida. Até a véspera, somente o exército, a polícia, socorristas e pessoas encarregadas da ajuda humanitária podiam entrar, mesmo assim com restrições, uma vez que muitas áreas ainda estavam parcialmente alagadas.

Centenas de edificações feitas de pau a pique haviam sido engolidas pelas águas. Muitas simplesmente desapareceram, quando o barro de suas paredes derreteu sob a força das águas, e mais de cem estão condenadas. Tudo – veículos, móveis, utensílios – fora recoberto por uma lama marrom, fina e viscosa. Milhares de pessoas estavam desabrigadas, tinham perdido suas casas e negócios. Um número incontável de animais domésticos havia desaparecido na correnteza.

Por sorte ou milagre, só uma pessoa perdeu a vida nesse desastre, vítima de um desabamento na zona rural. Mas bastava olhar ao redor para ver que a fúria dos elementos poderia facilmente ter ceifado muitas vidas. Isso foi evitado porque os moradores do centro histórico, advertidos a tempo de que as águas do Rio Paraitinga começavam a subir, abandonaram suas casas e se refugiaram em áreas mais altas da cidade. Mais de 500 pessoas não conseguiram escapar e, ilhadas nos telhados ou no último andar de sobrados, foram salvas pela ação diligente de instrutores de rafting da cidade. Unidos aos bombeiros, eles não mediram esforços para retirar esses indivíduos e levá-los para abrigos.

As águas da chuva foram impiedosas com o centro de na virada do ano. Construções de pau a pique perderam o barro, mas conservaram as armações de madeira que sustentam portas e janelas

é uma pacata cidade no leste de São Paulo, a 170 quilômetros da capital. Situa-se a 741 metros de altitude, na Serra do Mar, e tem pouco mais de 10 mil habitantes. Seu pitoresco casario histórico, com construções dos séculos 18 e 19, o clima serrano e as igrejinhas centenárias que remetem ao visual da vizinha Paraty têm atraído muitos turistas. É a terra natal do médico e sanitarista Oswaldo Cruz e cenário de um famoso “carnaval de marchinhas” e de uma movimentada Festa do Divino.

O Rio Paraitinga, que nasce a 1.800 metros de altitude na Serra da Bocaina, corta a cidade e lhe empresta o nome. Muitos dizem que, na época das chuvas, o rio vez por outra chega “ao primeiro degrau do comércio”, mas quase nunca trouxe problemas. Conta-se que cerca de 50 anos atrás houve uma enchente que causou prejuízos.

Texto e fotos de Johnny Mazzilli, de

Carros entre os escombros e rua enlameada na qual móveis estragados se juntavam a outros detritos.

Existem várias lendas a respeito dessa permanente ameaça do rio à cidade. Os moradores mais velhos mencionam 1914 como o ano da chegada de um misterioso andarilho portando uma bandeira do Divino. Ele pedia contribuições à população, mas o delegado decidiu prendê-lo como vigarista. Logo depois da prisão, começou uma chuva que ameaçou alagar a cidade. O estrago só não teria sido maior porque o pároco apelou ao delegado para que soltasse o andarilho do Divino. Logo depois que ele foi solto, as águas começaram a baixar.

Fatos ou lendas, a possível enchente de 50 anos atrás e a folclórica inundação beata de 1914 empalidecem diante da magnitude do desastre que se desencadeou em entre os dias 31 de dezembro e 1º de janeiro. Choveu como não se tem notícia desde a fundação da cidade, em 1773. O rio subiu impensáveis dez metros em pouco mais de 12 horas, inundou completamente o centro histórico, causou dezenas de desabamentos e produziu perdas materiais elevadíssimas. O Paraitinga, que em tupi-guarani significa “águas claras”, se transformou num caudaloso rio de águas turvas que submergiram dramaticamente toda a parte antiga da cidade.

Preparar a visita

No dia anterior à partida para a devastada são luís do paraitinga, eu e o Fisher, meu assistente de fotografia, preparamos kits com roupas, botas, água potável, gelo, material de higiene e alimentos. Na cidade não era possível comprar sequer um lanche, mesmo nas áreas não atingidas. havia desabastecimento generalizado de alimentos e constantes interrupções no fornecimento de água, energia elétrica, telefonia e gás. Nas áreas mais atingidas, a água, vital para a limpeza, continuava sendo fornecida. exército e polícia circulavam ostensivamente, assegurando a ordem pública em meio ao caos. helicópteros pousavam e decolavam das imediações. em 20 anos de viagens para mais de 30 países, não me recordo de outra ocasião em que o calor tenha sido tão sufocante e abrasador. apesar da lama, a temperatura fustigante e o tráfego frenético de caminhões e máquinas removendo entulhos faziam erguer um pó finíssimo que a tudo recobria.

Texto e fotos de Johnny Mazzilli, de

Quando cheguei, as pessoas cujas casas não haviam sido destruídas começavam a retornar aos lares que haviam abandonado às pressas. Não houve muito tempo para reflexões sobre os porquês da tragédia. Elas arregaçaram logo as mangas e começaram a varrer a lama e a lavar o que tinha restado. Da janela do andar superior do seu sobrado, um morador atirou um móvel arruinado pela água. Quando ele acabou de se espatifar na calçada, sobre um monturo de detritos, ele disse ironicamente ao vizinho de frente: “Ei, amigo, desculpe. Trinquei sua casa…”

Quando começou o vaivém das pessoas nas ruas, elas caminhavam para lá e para cá, pisando no lixo, ou tentando se desviar dele. Sofás, cadeiras, eletrodomésticos, computadores, armários, tapetes e roupas, tudo era atirado às ruas e se misturava a sacos de alimentos estragados que as águas haviam dispersado por toda a cidade. Depois da chuva, chegou o calor intenso, e as coisas estavam em processo de acelerada decomposição.

Parecia ter chovido feijão sobre . Solto, ensacado, em fardos, o feijão era pisado em toda parte. Desgarrados dos açougues, enormes pedaços de carne bovina, mais carcaças de porcos e frangos apodreciam no calor intenso e juntavam nuvens de moscas.

Pombos se fartavam pousados em sacarias de milho, procurando os grãos ainda bons. Próximo a supermercados, detritos se acumulavam em uma maçaroca indescritível formada por queijos, blocos de presunto, sacos de batata e cebola, frangos, leitões, sacos de laranja e latarias. O exército alertava que em um ou dois dias poderiam surgir os primeiros casos de leptospirose, perigosa doença transmitida pela urina do rato e bastante comum em cenários desse tipo.

Objetos como freezers, geladeiras, armários, cadeiras, mesas e, principalmente, botijões de gás, que tinham flutuado e se dispersado pela correnteza, encontravam-se agora empoleirados em cima de telhados. Nas ruas e ruelas próximas ao rio, troncos de árvores e grandes tufos de vegetação impediam a passagem. A enchente levou quase todo o estoque de caixões de defunto da funerária local. Flutuando sobre as águas, eles saíram como barquinhos e, por mórbida ironia, alguns deles acabaram estacionados exatamente em frente à Casa do Idoso. Diante do cartório de imóveis, todos os livros de registro de propriedades do município jaziam encharcados na calçada.

Entre as perdas mais dolorosas estava a Igreja Matriz, que desmoronou. Primeiro desabaram as torres, em seguida ruiu a nave. Quem caminhava entre os escombros não via sinal de cimento; era tudo de pau a pique. O desabamento atingiu diversos veículos que estavam ao redor, soterrando alguns e destruindo a todos.

Texto e fotos de Johnny Mazzilli, de

Um dos bonecos característicos do carnaval da cidade.

A capela de Nossa Senhora das Mercês, erigida em 1814 e principal patrimônio histórico religioso da cidade, também veio abaixo. Quando cheguei ao local, um único homem trabalhava nos escombros. Suava em bicas, sob um sol abrasador, enquanto revolvia com decisão a terra e retirava elementos da construção da capela, como tijolos, placas e cacos de ornamentos. João Carlos é arquiteto em São José dos Campos. Ele foi a para coordenar a recuperação da capela. Com ele, Karen Donegá e José Carlos Imparato formavam o time dos principais responsáveis pela localização, em meio aos escombros, da imagem de Nossa Senhora das Mercês. Construída em argila crua, a imagem, após permanecer submersa por horas e receber o impacto do desabamento da capela, sofreu apenas danos parciais que não comprometerem sua estrutura e aparência. Sua restauração não será das mais complexas.

Muitas casas construídas em pau a pique tiveram o barro de suas paredes amolecido e levado pelas águas. Restaram apenas as armações de madeira a sustentar portas e janelões coloniais. Certas casas de pau a pique tinham recebido um piso superior de alvenaria. Agora, algumas delas mantinham o piso superior intacto, mas apoiado em escombros. Num certo momento, ouvi um ruído e, quando me voltei para a origem do som, mais uma parede havia desabado.

sempre foi cidade de forte tradição católica. Assim, era comum ouvirse argumentos religiosos na tentativa de explicar o desastre. Muitos o atribuíam à mão do Divino e, mais que isso, sentiam-se culpadas. Toda enlameada, uma mulher atravessava a ponte puxando um carrinho de feira com tudo que restara dos seus pertences. Parou diante de mim e disse que aquilo só tinha acontecido por conta da falta de fé das pessoas. Ao lado da igreja, a jovem Carla, integrante do coral, limpava desconsolada um clarinete. Ela nos contou que a fanfarra e o coral perderam muitos de seus instrumentos. Um antigo violino foi encontrado, dentro do estojo, a centenas de metros dali, destruído. Quando perguntei o que teria causado esse desastre, também ela respondeu, convicta: “As pessoas perderam a fé e não vão mais a igreja.”

Texto e fotos de Johnny Mazzilli, de

No Mercado Municipal, Antônio puxava a lama para fora de seu bar com um rodo estreito e surrado, o que fazia seu trabalho render pouco. A única coisa limpa e reluzente, em cima da mesa, eram as garrafas de bebida. Perguntei-lhe o que, na sua opinião, teria causado a inundação, e pela terceira vez seguida ouvi a mesma explicação: “As pessoas não têm mais fé. Não sei se você sabe, mas a água só parou de subir quando caiu o último pedaço da igreja. Isso foi um castigo para a igreja. Ela teve de cair porque se perdeu do povo.” E encerrou com esta: “Tá vendo o que dá o povo ficar indo nessas igrejas de crente?” Mas quando indaguei se ele, católico, acreditava que aquelas outras religiões trabalhavam para o mal, ele minimizou: “Nãão… Não é isso que eu quis dizer… Falo por mim: eu não vou mais a missa como antes, só quando tem casamento, enterro, essas coisas. Olha aí, levei o castigo também.”

No fim do dia me deparei, nos limites da cidade, com um boneco carnavalesco, recoberto de lama e acomodado sobre sacos atirados à rua. Parecia descansar ali, depois de uma refrega. O rosto salpicado de lama tinha um olhar arregalado, um ar de exaustão e perplexidade, e parecia perguntar: “Como isso pôde acontecer?”

Ajuda

até o fechamento desta edição, são luís do paraitinga precisava muito de ajuda material. o governo paulista afirmou compromisso com a reconstrução da cidade, mas são necessárias – e urgentes – as doações. precisa-se de tudo, notadamente os itens a seguir:

– Água

– Alimentos não perecíveis

– Artigos de higiene pessoal (pasta/escova de dente, sabonete, sabão, xampu, absorventes, toalhas)

– Botijões de gás

– Calçados

– Cestas básicas

– Colchões e cobertores

– Fraldas infantis e geriátricas

– Luvas e máscaras descartáveis

– Medicamentos variados

– Produtos de limpeza

– Roupas

– Sacolas plásticas para triagem de doações

Informações sobre como ajudar: www.saoluizdoparaitinga.sp.gov.br