14/10/2025 - 11:04
Violência em sala de aula e rotinas desgastantes afetam saúde psicológica de profissionais da educação.”Feminista filha da puta” foi como um aluno descreveu a professora Laura* após ter sido tirado da sala por mau comportamento. Em meio ao contexto de discussões sobre a educação, a convivência violenta e o adoecimento mental dos professores permeiam o cotidiano em escolas.
Segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, coordenado pelo Ministério Público do Trabalho, houve um aumento de 66% na concessão de benefícios previdenciários associados à saúde mental, acidentários e comuns para profissionais da educação infantil ao ensino médio entre 2023 e 2024.
Patrícia*, professora de biologia do estado de São Paulo e de ciências do município de São Carlos, faz parte dessa estatística. Ela retornou, neste ano, de seu quarto afastamento por saúde mental, em que se encontrava desde 2023. Desde maio, ela está em processo de readaptação e, por isso, trabalha na biblioteca da escola. Regulamentada por lei desde 1990, a readaptação tem previsão de dois anos, mas pode ser estendida até o profissional estar preparado para retornar à sala de aula.
A professora com 28 anos de experiência considera um privilégio poder se recuperar adequadamente, mas ainda se sente “fracassada”. “Não é uma coisa que eu me orgulhe de fazer, muito menos que eu despreze. Mas, de certa forma, é frustrante pois me preparei tanto para ser uma boa professora e agora nem professora eu sou mais.”
Patrícia sofre de Transtorno Misto Ansioso e Depressivo. Em 2000, após enfrentar uma depressão pós-parto, iniciou tratamento com medicamentos e psicoterapia. Em 2004, após mudar de cidade, abandonou o tratamento e disse ter ficado relativamente bem durante alguns anos. Em 2012, 2014, 2019 e 2023, ela foi afastada para tratar da saúde mental. Nesse período, enfrentou divórcio, sobrecarga e crises de ansiedade em sala de aula.
Rafaella Pamela Ferreira, pós-graduada em neuropsicopedagogia e professora do ensino infantil há 15 anos no município de Palhoça (SC), explica que existe uma pressão para que professores exerçam sempre o máximo de produtividade, apesar de seus limites. “Você fica pensativo, com aquele aperto, aquela angústia, achando que não é um profissional bom suficiente para trabalhar com aquelas crianças.”
Violência em sala de aula afeta alunos e professores
A violência em sala de aula é um dos principais fatores que comprometem o estado mental dos professores. Para Patrícia, esse foi o motivo de seu primeiro afastamento, em 2012, quando uma aluna de 11 anos a segurou pelo pescoço após ter o pedido de sair da sala negado. Na época, a professora precisou sair da sala para chorar.
Ferreira relata que também em 2012, no início de sua carreira, notou um aluno de 3 anos utilizando uma faca de brinquedo para representar violência contra bichos de pelúcia. Além disso, a criança fazia sempre desenhos com cores escuras e cenários violentos. Ela entendeu que isso poderia ser tanto algo próprio da criança quanto resultado de algo que estivesse acontecendo em casa.
Segundo o Atlas da Violência deste ano, a residência aparece como o principal local das ocorrências de violência contra crianças e adolescentes. Na faixa de 0 a 4 anos, 67,8% dos casos acontecem em casa; dos 5 a 14 anos, a ocorrência é de 65,9%. A escola aparece como cenário de violência em 2,2% e 5,7% dos casos, respectivamente.
O professor do Departamento de Psicologia Clínica e Vice-Diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Andrés Eduardo Aguirre Antunez, concorda. “A violência que acontece na sala de aula é a que acontece na vida e a criança leva para a escola”, afirma.
Ferreira conta que, ao observar os sinais, chamou a mãe do aluno para uma reunião. A mãe contou que o filho havia presenciado seu ex-marido tentar esfaqueá-la em casa. A professora iniciou um trabalho de recondicionar o garoto para tentar fazer desenhos mais positivos. Embora tenha obtido sucesso enquanto ele estava na instituição, a criança foi transferida de escola e a docente perdeu contato.
Patrícia afirma que é comum os professores se envolverem com os problemas pessoais dos alunos. A menina que a pegou pelo pescoço era cega de um olho, resultado de um acidente por negligência da família. Enquanto brincava no canteiro de uma obra, a aluna caiu em uma pilha de entulho e teve o olho perfurado por um pedaço de ferro.
Laura, professora do estado de Santa Catarina e com experiência de 7 anos em educação, concorda com Patrícia. Uma de suas alunas de 15 anos sofreu abuso sexual de um primo e a procurou para desabafar. Segundo Laura, a mãe da adolescente se recusa a levar a filha a um psicólogo, algo que preocupa a docente. O caso foi levado para o Conselho Tutelar.
Estresse constante
Gisela Ivani Hermann, ex-secretária de educação em Saudades (SC) com 32 anos de experiência em educação, afirma que professores enfrentam constantemente uma série de fatores estressantes. “A saúde mental dos professores é uma questão crítica e muitas vezes negligenciada, especialmente diante dos desafios cada vez maiores enfrentados no ambiente educacional “, disse a ex-secretária.
Antunez alerta para a fragilização dos professores, principalmente quando não existe mais felicidade em dar aula. É o caso de Patrícia. “Quando eu estou lá dando as 48 aulas por semana, eu não sei nem mais quem é a Patrícia pessoa. Ela não sabe do que gosta. Ela sente muita culpa por estar tanto tempo fora de casa em vez de estar cuidando dos filhos.”
Antes de seu afastamento mais recente, a professora enfrentava um turno de 11h diárias às terças-feiras. Semanalmente, sentia tremores e fraqueza. Um dia, após passar mal novamente, saiu da sala e encontrou uma aluna do 8º ano, que a explicou que aquilo seria uma crise de ansiedade.
“A gente costuma falar ‘saúde mental’ como se o problema estivesse no cérebro. Os problemas mentais acontecem no corpo todo. Eles envolvem uma complexidade maior”, explica Antunez.
A DW questionou se as profissionais já pensaram em mudar de profissão. “Todo dia. Quando você está na faculdade, você vai com a ideia de salvador da pátria. Quando você vê como realmente funciona, é que cai a ficha”, respondeu Laura.
Ana Luiza Siqueira, professora de sociologia da rede estadual de São Paulo há 20 anos, conta, inclusive, que já deixou a área por dois anos. Entre 2007 e 2009, a docente trabalhou com pesquisa de opinião política de uma empresa em São Carlos.
Em consulta com o psiquiatra após seu primeiro afastamento, Patrícia ouviu: “essa atividade que você exerce vai sempre fazer você piorar”. Entretanto, ela afirmou não enxergar uma mudança de área como algo viável. “A minha vida sempre foi estudar e trabalhar com educação. Como você vai mudar de profissão de uma hora para outra? Eu só sei ser professora.”
Problema estrutural
“A instituição escolar está doente”, diz Laura. Ela conta se sentir desgastada pela exigência constante de métodos incompatíveis com os recursos disponíveis nas escolas. “Eu já tive aluna desmaiando de calor porque não tinha ar-condicionado na sala. ‘Cultura digital’ é uma das competências dos Itinerários Formativos do Novo Ensino Médio. A minha escola não tem nem internet. Como é que eu vou aplicar isso?”
Todas as professoras entrevistadas apontaram ainda o grande número de alunos por turma como um dos principais problemas para o exercício da profissão com qualidade.
Para Siqueira, as mudanças no tempo de contribuição para aposentadoria de professores tornam o cenário “desesperador”. “Não tem como ficar 40 anos trabalhando sem se arrebentar. Eu não acredito que a minha saúde vá dar conta de chegar até lá.”
Já Ferreira destaca o desejo pela previsão de um acompanhamento psicológico para professores, “porque a gente tem que entender a família e a criança, mas nós não somos entendidos. Esse é o maior desafio hoje, a saúde mental”.
* As entrevistadas tiveram o nome alterado na reportagem para preservar suas identidades.