Quando foi convidada por Ney Matogrosso para subir ao palco do Doce Maravilha, em setembro, e escolher uma música de seu repertório, Marisa Monte não precisou revirar o baú do artista para resgatar uma canção de 1973: O Vira. “Amo essa música!”, suspirou ela, durante um ensaio do festival. Ama tanto que, em 2016, cantou a canção em dueto com Carminho, em Portugal.

Surpreso com a escolha de Marisa, Ney admitiu: “Eles pedem e nunca canto” – a última vez, aliás, que ele havia cantado essa música foi em 1999, na gravação do álbum Vivo. No mesmo ensaio, Ney propôs também Fala – e Marisa topou.

O Vira e Fala são de autoria de João Ricardo e Luhli, nome artístico de Heloísa Orosco Borges da Fonseca, e integram o álbum Secos & Molhados, o primeiro da carreira de Ney. Foi Luhli, aliás, quem apresentou o cantor a Ricardo, o fundador do grupo que revolucionou a MPB.

“A primeira e mais importante revolução foi política”, afirma o jornalista Miguel de Almeida. “Eles conseguiram driblar a censura com letras contundentes que falavam de liberdade. Quando Chico Buarque e Taiguara tentavam fazer isso, tinham suas músicas proibidas.”

Miguel de Almeida é autor de Primavera nos Dentes (Record, 2023). Não satisfeito em escrever uma biografia da banda, ainda dirigiu e roteirizou uma série documental homônima para o Canal Brasil. O primeiro dos quatro episódios estreia nesta sexta-feira (31/10), às 21h30. “Tudo era revolucionário no Secos & Molhados: a dança, a maquiagem, o gestual…”, prossegue. “Seus integrantes não eram homens, nem mulheres: eram bichos, quase andróginos.”

Entre ex-integrantes, músicos e produtores, Almeida entrevistou 18 pessoas. Da formação clássica, apenas João Ricardo, o comandante daquela revolução sem armas, declinou do convite. Partiu dele, entre outras, a ideia de musicar poemas de autores como Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e Oswald de Andrade.

“João não quis liberar as músicas. Respeito a decisão dele, mas acho uma tolice”, lamenta. Diante disso, o diretor pediu ao músico Gerson Conrad e ao poeta Paulinho Mendonça que compusessem uma canção inédita. Foi assim que nasceu Ouvindo o Silêncio. “É sobre um tempo em que tantos falam e ninguém escuta”, resume Mendonça.

“Um relâmpago de liberdade!”

Gerson Conrad tinha 16 anos quando conheceu João Ricardo, em 1968. Os dois eram vizinhos na Bela Vista, em São Paulo. Português de Arcozelo, Ricardo, três anos mais velho, chegou ao Brasil em 1964 – seu pai, o jornalista João Apolinário, fugia da ditadura salazarista. Foi durante uma viagem a Ubatuba, em 1971, que Ricardo avistou uma placa com o nome que batizaria seu futuro grupo.

“O que vocês acham se eu tiver uma banda que se chama Secos & Molhados?”, indagou aos amigos. “Quando eles começaram a rir, pensei: ‘Acertei na mosca!'”, recorda João Ricardo no documentário Secos & Molhados (2021), de Otávio Juliano.

Escolhido o nome, faltava o mais importante: montar a banda. Ao longo dos anos, Ricardo teve sete Secos & Molhados: o primeiro, em 1971, e o mais recente, em 2012. A formação clássica, com Ney Matogrosso ao microfone, surgiu em 1973, chegou ao fim em 1974 e, neste período, lançou dois LPs e gravou 26 músicas.

“Do que eu mais sinto saudade? Do espírito de equipe. Foram mais de 365 apresentações em onze meses”, recorda Conrad. “Do que eu menos sinto falta? Do último mês de convívio. Foram esses desentendimentos que deram fim à formação mágica do grupo.”

Almeida entrevistou quatro pessoas que tiveram participação decisiva na banda de João Ricardo: o poeta Paulinho Mendonça, o pianista Emílio Carrera, o baixista Willy Verdaguer e o fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues. Mendonça é, ao lado de Ricardo, coautor de um dos clássicos do grupo: Sangue Latino, que abre o lado A do primeiro disco. No segundo, escreveu as letras de Medo Mulato, O Doce e o Amargo e Delírio… Foi ele quem sugeriu a Ney de Souza Pereira a ideia de adotar o Matogrosso do pai como sobrenome artístico.

“A proposta ousada e o comportamento provocativo surpreenderam tanto a indústria fonográfica quanto a censura militar”, afirma o poeta. “E, ainda, caíram no gosto do povo.” Em um ano, o primeiro álbum vendeu, segundo estimativas, 1 milhão de cópias e colecionou discos de ouro, platina e diamante. De quebra, o grupo lotou estádios e atraiu multidões. O mais famoso show aconteceu no Maracanãzinho (RJ), no dia 10 de fevereiro de 1974. Naquele domingo, 20 mil pessoas entraram no ginásio, e outras 20 mil ficaram do lado de fora.

O pianista Emilio Carrera e o baixista Willy Verdaguer acompanharam de perto a passagem daquele furacão. Além de tocarem nos dois álbuns, participaram da turnê que, pelas contas de Conrad, passou de “365 apresentações em onze meses”. Houve de tudo: de miss escondida debaixo da cama de Conrad num hotel do interior de São Paulo até Ney tendo de sair às pressas de um ginásio no Recife dentro de um camburão.

“Foi mais do que uma revolução. Foram várias revoluções: cultural, estética, sexual e, por que não dizer, infantil. As crianças se fascinavam com aquela mistura de cor, energia e imaginação”, relata Carrera. “O país vivia sob um medo sufocante. Foi nesse cenário que o grupo surgiu como um relâmpago. Um relâmpago de liberdade.”

Verdaguer endossa as palavras do colega. Por que, meio século depois, as músicas continuam a fazer sucesso e a ganhar releituras? “As músicas de hoje são feitas para durar pouco. O artista ganha dinheiro e pronto. Não tínhamos a preocupação de vender discos e ganhar dinheiro. Nossa preocupação era fazer música de qualidade.”

Em 2003, no trigésimo aniversário do primeiro disco, o Secos & Molhados ganhou, de presente, um álbum-tributo, Assim Assado, só com regravações. Estão lá, entre outros artistas, Nando Reis, Ira!, Capital Inicial, Arnaldo Antunes e Ritchie. “As músicas do Secos & Molhados são de uma originalidade tão espetacular que não ficaram datadas. Já nasceram atemporais”, afirma o jornalista Júlio Maria, autor de Ney Matogrosso – A Biografia (Cia das Letras, 2021).

Problemas no paraíso

Miguel de Almeida compara Antônio Carlos Rodrigues a George Martin, o produtor musical dos Beatles. O pedido para “dar uma força” ao grupo partiu de Apolinário, o pai de Ricardo. Os dois foram colegas de redação no extinto jornal A Última Hora. Segundo Rodrigues, foi dele a ideia de os integrantes pintarem os rostos. E, dali em diante, só subirem ao palco de caras pintadas. Durante a sessão, o baterista argentino Marcelo Frias deu para trás. “Sou músico, não palhaço”, teria protestado. De quarteto, o Secos & Molhados, então, virou um trio.

Partiu de Rodrigues, também, a ideia de fotografar a capa, inspirado em um ensaio de sua autoria, publicado na revista Fotoptica. Como o nome do grupo era Secos & Molhados, passou em um armazém próximo de casa, comprou pão, vinho e linguiça, e espalhou essas e outras iguarias sobre a mesa. “Como não tinham grana para me pagar, propus o seguinte: me paguem quando fizerem sucesso e ficarem famosos, combinado? Estou esperando até hoje…”, queixa-se Rodrigues. “No segundo disco, voltei a fazer a capa. Mas, dessa vez, me pagaram à vista.”

A recusa de João Ricardo em participar de uma série sobre o grupo que ele próprio fundou mostra que as feridas ainda não cicatrizaram. Há duas versões para o fim precoce do Secos & Molhados. De um lado, Ney Matogrosso e Gerson Conrad afirmam que João Ricardo demitiu o empresário Moracy do Val e, em seu lugar, colocou o próprio pai, João Apolinário. E mais: se dependesse dele, Apolinário, Ney e Gerson seriam rebaixados de sócios para empregados. “Essa merda eu não assino”, teria dito o vocalista depois de ler a minuta do contrato.

De outro, João Ricardo sustenta que Ney Matogrosso já teria dito a ele que pretendia sair do grupo. Apesar do susto, pediu ao cantor que esperasse o lançamento do segundo disco – àquela altura, já gravado – para anunciar sua decisão publicamente. Quando soube, por intermédio da imprensa, que Ney e Gerson concederam uma entrevista ao Jornal da Tarde do dia 10 de agosto de 1974 comunicando a saída da banda, sentiu-se traído. “Levei um tiro de canhão…”, desabafa no documentário de Juliano. “O que eu podia fazer? Eram dois contra um.”

Discordâncias à parte, a polêmica sobre o fim de um dos maiores fenômenos da indústria fonográfica brasileira está longe de chegar ao fim. Gravado no palco de um Theatro Municipal de São Paulo vazio, o documentário Secos & Molhados, de Otávio Juliano, apresenta a versão de João Ricardo da história. “Sempre que o Secos fazia aniversário, eu via e ouvia muitos programas sobre o grupo, mas o João nunca falava. Queria ouvir dele sobre a vinda de Portugal, a formação do grupo, a parceria com a Luhli…”, relata Juliano.

Procurado pela reportagem da DW, João Ricardo preferiu não conceder entrevista.