17/12/2012 - 12:55
Não há novidade em dizer que a melhor forma de se conhecer uma cidade é caminhar. Paris, Lisboa, Madri, Berlim e outras metrópoles já foram descritas e exploradas minuciosamente dessa maneira. Mas a experiência muda de figura quando o andarilho é um dos maiores poetas brasileiros, o pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), criador de um roteiro único da cidade de Sevilha nas páginas de Sevilha Andando.
“Só com andar pode trazer/ a atmosfera Sevilha, cítrea,/ o formigueiro em festa/ que faz o vivo de Sevilha”, diz o poema que dá título ao livro lançado em 1990. O percurso de João Cabral em Sevilha é uma primeira lição decisiva para quem deseja conhecer uma das mais visitadas atrações da Espanha, uma cidade cuja arquitetura secular preserva boa parte da atmosfera e da tradição retratadas pelo poeta.
Quarta maior cidade espanhola, com 700 mil habitantes, Sevilha é a capital da Andaluzia, região do sul do país, uma das mais fascinantes e turísticas da Europa. O poeta brasileiro chegou a declarar que é preciso “Sevilhizar o mundo”, título do poema no qual sugere fazer do planeta “uma enorme Sevilha” para torná-lo mais civilizado. João Cabral sabia o que estava dizendo, pois possuía uma quilometragem de experiência invejável de andarilho. Como diplomata brasileiro, trabalhou em Dacar (Senegal), Londres, Marselha, Madri, Barcelona, Genebra, Berna e no Porto.
No seu caminhar poético por Sevilha, o poeta escreve sobre praticamente todos os pontos conhecidos da cidade, principalmente na segunda parte do livro, intitulada “Andando Sevilha”, na qual parece rememorar a capital em que viveu nas décadas de 1950 e 1960 (veja quadro). A Praça de Touros, a catedral, o bairro de Triana, a fábrica de tabacos e muitos outros locais típicos da cidade são vistos com os olhos e a sensibilidade de quem soube se aproximar das coisas essenciais.
Mas que o leitor não se engane. João Cabral não é daqueles poetas que oferecem um roteiro fácil e apressado para viajantes superficiais e desavisados. O que ele apresenta é a alma da cidade por meio de metáforas e de imagens que imprimem novas dimensões a tudo o que se vê. Sevilha é comparada a um fruto cítrico, “que quanto mais ácido, mais vivo”, a uma mulher, a uma casa, a uma ilha e a um lugar ardente, prazeroso em suas contradições.
Em “A Catedral”, o poeta compara a grandiosidade do edifício a uma cordilheira e a “um enorme touro em pé”, que desponta “na graça rasa de Sevilha”, referindo-se ao fato de a cidade não possuir edifícios altos no seu centro histórico.
Alguns versos depois, ironiza o fato de a catedral, erguida no início do século 15, uma das mais belas da Europa, ser também uma das três que se dizem detentoras dos restos mortais de Cristóvão Colombo. De fato, Espanha, Cuba e República Dominicana disputam a guarda dos ossos do famoso navegador, fato que o poeta não deixa passar: “Lá se admira a terceira tumba/ de Colombo, como outras falsa./ (As de Cuba e de São Domingos/ pretendem também a carcaça.)”.
Quando fala da Praça de Touros, uma das mais tradicionais da Espanha, ressalta seu “barroco alegre, de cal e ocre,/ sem jogos fúnebres de morte”, numa metáfora que reflete as cores do verão sevilhano e uma das mais fortes (e polêmicas) tradições da Espanha.
Vale acrescentar que João Cabral tornou-se amigo de grandes toureiros espanhóis, dedicando poemas aos mais famosos, como Manolo González e Miguel Baez, conhecido como Litri, ambos em Sevilha Andando. Na companhia deles o poeta frequentava os bares que circundam a Praça de Touros, os quais ainda hoje guardam a tradição de servir comidas típicas de toureiros, como o rabo de toro, prato muito similar à brasileira rabada.
Cabral destaca a herança medieval da cidade, com seus caminhos estreitos e labirínticos, como ressalta no poema que leva o nome de uma das principais ruas do centro, Calle Sierpes, “onde passear é navegação/ é andar-se, e sem destinação. E completa: “lá, navegar é em linhas curvas,/ como a cobra que dá nome à rua”.
Em outro poema, intitulado “Sevilha e o Progresso”, ressalta o fato de a cidade ter se preservado ante a modernidade, afirmando ser ela “a única cidade que soube crescer sem matar-se./Cresceu do outro lado do rio,/ cresceu ao redor como os circos,/ conservando seu puro centro, intocável, sem que seus de dentro/ tenham perdido a intimidade”.
Verão Sevilha
“Qual o segredo de Sevilha?”, indaga a primeira frase de “Cidade de Nervos”, poema que traz implícita a resposta à essa pergunta: “Saber existir nos extremos/ como levando dentro a brasa/ que se reacende a qualquer tempo.” É assim que João Cabral nos insere no clima de Sevilha, uma das cidades mais quentes da Espanha, onde o sol abrasador do verão molda as atitudes e a vida de seus moradores.
Outro poema, “Verão de Sevilha”, chama a atenção aos toldos que cobrem algumas das ruas da cidade nessa estação: “se cobre de toldos e de lona,/ para que a aguda luz sevilha/ seja mais amável nas pontas,/ e nele possa o sevilhano, /coado o sol cru, ter a sombra/ onde conversar de flamenco,/ de olivais, de touros, donas”.
O poeta brasileiro celebra as bases da cultura andaluz: a amabilidade de seu povo, o flamenco, a dança que traduz sua cultura árabe e cristã, e a produção de azeite – a Andaluzia é a maior produtora de azeite do mundo, seu cultivo faz parte da cultura da região há séculos.
Para João Cabral, o calor da cidade também determina a exuberância das mulheres, exaltadas em vários poemas como sinônimo de sensualidade, altivez, e como metáforas da própria Sevilha – “Uma mulher que sabe ser-se/ e ser Sevilha, ser sol, desafia/ o ao redor, e faz do ao redor/ astros de sua autonomia”, diz em “Sevilha Andando”. O pensamento é concluído em outro poema, “O Segredo de Sevilha”, num diálogo com o poeta sevilhano Joaquim Romero: “Caro amigo Joaquim Romero,/ nem andaluz eu sou, sequer, /mas digo: o tudo de Sevilha/ está no andar de sua mulher.”
A caminhada literária leva o leitor à antiga fábrica de tabacos, que abriga hoje a Universidade de Sevilha, onde “lá trabalharam as cigarreiras, quase nuas pelo calor”. Uma das funcionárias mais conhecidas foi Carmen, a cigana que inspirou e deu nome à ópera mais famosa do compositor francês Georges Bizet, apresentada pela primeira vez em 1875, em Paris.
O poeta também percorre o bairro de Triana, reduto de ciganos que já foi referência de marginalidade, de pobreza, e que era constantemente invadido pelas águas do Rio Guadalquivir, guardado pela Torre del Oro. Hoje as inundações não acontecem mais e Triana tornou-se uma forte referência cultural de Sevilha, onde encontramos bons bares (que cultivam a tradição das tapas), peixarias, ateliês de arte e lojas de azulejos, que recebem cada vez mais turistas.
Com ironia, João Cabral não deixa passar nem mesmo seu aborrecimento em relação à presença dos turistas em seu “ofício fotográfico”, como destaca no poema “Os Turistas” e em outras passagens do livro. A verve, entretanto, não se aplica ao que, por conta da poesia, converte um passeio superficial em paixão.
Quem se embrenha em Sevilha conserva eternamente na memória a capital andaluz, como diz o poema “Sevilha de Bolso”: “Carregamos Sevilha, os dois,/ quem foi e quem nunca foi.” Afinal, “onde quer que estejamos sozinhos/ nos traz Sevilha, seu dentro íntimo,/ de uma casa que vai comigo/ e que invoco quando preciso.”