06/07/2023 - 7:13
Ataques de líder evangélico André Valadão contra comunidade LGBTQIA+ não está pautada em textos bíblicos ou naquilo que Jesus pregava, afirma à DW teólogo e pastor Sergio Dusilek.Um dos principais líderes igreja evangélica no Brasil na atualidade, André Valadão está na mira do Ministério Público Federal. Só nesta semana, inquéritos contra o pastor foram abertos em Minas Gerais e no Acre, ambos como resultado de manifestações preconceituosas e de incitação ao ódio promovidas pelo pastor recentemente contra a comunidade LGBTQIA+.
Em junho, mês do Orgulho LGBTQIA+, Valadão afirmou que “odeia e repugna qualquer atitude de orgulho, só o uso da palavra Deus já condena”. “Considero que hoje é o mês que Deus mais repugna na humanidade”, disse. Neste domingo (02/07), Valadão subiu o tom em um culto da Igreja Batista Lagoinha, em Orlando, nos EUA, ao insinuar que seus fiéis deveriam matar pessoas LGBTQIA+.
Para o pastor Sergio Dusilek mestre e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e ex-presidente da Convenção Batista Carioca, Valadão “chegou ao limite”. “Na minha percepção, não há como elevar o tom acima disso”, ponderou à DW. “É muito preocupante que uma pessoa que se diz religiosa faça uma leitura tão enviesada do texto bíblico, para determinar que uma prática ou conduta é pecaminosa”, complementou.
Como pastor, de que maneira o senhor avalia as agressões verbais feitas pelo sr. André Valadão contra a comunidade LGBTQIA+?
Sergio Dusilek: De maneira assustadora. Ele já vinha falando uma série de coisas problemáticas e, nesta última, ultrapassou qualquer limite. Na minha percepção, não há como elevar o tom acima disso. É muito preocupante que uma pessoa que se diz religiosa faça uma leitura tão enviesada do texto bíblico, para determinar que uma prática ou conduta é pecaminosa. E ele jamais vai encontrar na Bíblia qualquer base, citação, que justifique o que afirmou, sobre a morte de pessoas homoafetivas e LGBTQIA+. Ele pediu desculpas, mas ninguém acredita naquilo. Não é verdadeiro.
Esse tipo de violência é compatível com o que defende a religião evangélica em sua essência?
Existem alguns textos que são usados para esse tipo de justificativa, mas acho curioso que o maior símbolo da igreja, que seria a figura de Deus encarnado em Jesus de Nazaré, não toca nesse assunto. A sexualidade das pessoas não era uma agenda de Jesus. E se Jesus é o cabeça da igreja, o que é que mudou para que seus ensinamentos não sejam seguidos? Outra questão importante é que o relacionamento homoafetivo sempre existiu, mas isso nunca foi pauta para Jesus.
E por que o tema é um assunto tão importante para os evangélicos?
A igreja cristã, ao longo dos séculos, sempre elenca um “problema” da vez, um “pecado” que é preciso combater pelo bem da sociedade. Nos anos 1970, aqui no Brasil, era o divórcio. Uma coisa simples, não é? Mas, naquela época, divorciados eram excluídas da igreja, sofriam dificuldades terríveis no ambiente religioso. Até que o divórcio entrou na família do diácono, que descobriu que a filha se casou com um homem violento e preferia uma separação a vê-la apanhando. E aí começa a haver interpretações da Bíblia para dessacralizar situações que antes eram questionáveis.
Agora, uma questão importante é que essa perseguição nas igrejas com a comunidade LGBTQIA+ é muito mais forte na geração acima dos 45 anos, que é a minha. Para os mais jovens, até os 30 anos, a convivência com pessoas homoafetivas dentro das igrejas é mais natural.
Há um anacronismo dentro das igrejas sobre pautas sociais, como os relacionamentos homoafetivos e o racismo?
Sim, há um descompasso, porque a sociedade caminhou e está caminhando. A sexualidade já não é um problema social, mas continua sendo um problema para a igreja. E esse conflito se insere naquilo que acadêmicos chamam de “Guerra Cultural”. Nessa guerra, há uma disputa entre o que prega a igreja e o que acontece no “mundo”. Assim, a afetividade de alguém se torna um elemento identificador de quem ganhou essa disputa.
Na cabeça das pessoas preconceituosas, a normalização do relacionamento homoafetivo significa uma derrota dos valores da igreja para as coisas mundanas. A sexualidade sempre foi um assunto delicado para a igreja. A cruzada da vez são as pessoas LGBTQIA+, porque tem força mobilizadora e age sobre o imaginário. Mas continua sendo uma cortina que encobre a realidade.
Há uma despolitização para que não haja qualquer debate, portanto?
Pelo contrário: há uma politização, só que da extrema direita. Durante as eleições presidenciais, algumas igrejas aqui do Rio de Janeiro se tornaram comitês eleitorais, com distribuição de panfleto e santinho. Há uma redoma dentro das igrejas, liderada por alguns pastores, para que as pessoas não saibam, por exemplo, o que está acontecendo no governo Lula. E, nas eleições, disseram que se ele fosse eleito iam fechar igrejas, prender pastores…Foi esse o nível. E não estou dizendo que Lula é perfeito. Ele comete erros como qualquer pessoa.
A questão da homoafetividade em relação a igreja está inserida em uma nomenclatura maior, que é a ideia da secularização. É a relação entre a igreja e o mundo. É uma tentativa revanchista de imposição dos valores cristãos à sociedade, e essa imposição objetiva exercer uma teocracia. É a ditadura do grupo cristão, que elegeu o tema homoafetivo como tabu. Ninguém conversa, lê ou pensa o tema com honestidade intelectual. Esses pastores que abordam o assunto com mais frequência nas igrejas não leram Judith Butler ou qualquer teórico para tentar entender o que está sendo falado e buscar uma outra forma de leitura em contraposição a que eles têm sobre os textos bíblicos.
O senhor falou sobre desonestidade intelectual. Mas há também falta de preparo?
Sim, é preciso fazer uma distinção entre as pessoas de boa-fé das igrejas que têm dificuldade de lidar com este assunto porque nunca foram esclarecidas ou tiveram qualquer formação no tema. Nelas foi semeado ao longo dos anos o preconceito em forma de sermão no púlpito. Gente extremista que transformou isso em uma bandeira. As pessoas que são enganadas por essa leitura enviesada da Bíblia são dignas de compaixão, porque a elas foi ensinado que a relação máxima com Deus inclui a condenação da homoafetividade.
Outro ponto é que nem todos os pastores tiveram formação teológica decente ou têm acesso à informação mais criteriosa. Há uma atuação fundamentalista muito forte no Brasil, uma carga doutrinal absurda. É manipulação de consciência. Para esses, que fazem o jogo da vez e surfam essa onda, não há compaixão. São pessoas que usam o preconceito para se promover. Eles fomentam o ódio e se colocam como os intérpretes bíblicos deste assunto, sem qualquer discussão possível. Há só o reforço odiento.
Qual o caminho para amenizar esse ciclo de violência contra pessoas LGBTQIA+ dentro das igrejas?
Voltar aos evangelhos, à vida e ao ensino de Jesus. Quando as pessoas olham para Jesus e centram nele o seu foco, não há espaço para discurso odiento. Isso é algo dos fariseus religiosos. Há uma passagem da Bíblia que diz que a vida humana está acima dos rituais e de qualquer doutrina. O que você pensa que está certo não é maior do que a vida humana. Quando algum pensamento se colocar acima da vida humana, esse pensamento não é de Deus. Se as Igrejas voltarem a falar mais sobre Jesus, boa parte desse clima de ódio começa a ser dissolvido.
Logicamente, aqueles que foram arregimentados pelo ódio, saíram das igrejas, porque eles não querem ouvir sobre o amor. E eu também acho que deve haver uma abordagem honesta nas igrejas sobre o assunto, em parceria com as universidades, mas sem a demonização crente, sem tratar aquele que recebe a carga de preconceito na igreja como uma figura abjeta e menor. Isso não abre diálogo.