No consumista Ocidente, cada vez mais pessoas abdicam de bens materiais e do trabalho estressante em nome da satisfação interior. O livro Por uma Vida Mais Simples disseca esse movimento sem líderes

A expressão “simplicidade voluntária” designa um dos mais interessantes movimentos em curso no planeta, sobretudo no Ocidente: pessoas que se desfazem do excesso de bens materiais, da carga pesada de trabalho, da presença usual em redes sociais, e optam por viver de modo mais simples e gratificante. Sem líderes, regras ou causas únicas, esse fenômeno não é novo (tem raízes na Grécia antiga), mas ganhou vigor neste lado do mundo no século 19, a partir do livro Walden, ou a Vida nos Bosques, do norte-americano Henry Thoreau, e no século seguinte, estimulado pelas crises econômicas, que levam a uma revisão do modo de vida.

O professor gaúcho André D’Angelo aborda esse tema, de forma concisa e fluente, em um recente lançamento, Por uma Vida Mais Simples (Ed. Cultrix). A obra traça um panorama histórico do conceito de simplicidade voluntária, desde as origens na Antiguidade até hoje, e apresenta as experiências de brasileiros que optaram por esse caminho, como a jornalista e escritora Danuza Leão, autora do prefácio. D’Angelo fala a seguir sobre esse tema, cuja atualidade aumenta à medida que a humanidade exaure cada vez mais os recursos naturais do planeta.

PLANETA – Em seu livro, o sr. mostra que a simplicidade voluntária tem raízes na antiga Grécia. Em que momento ela passou a atrair mais atenção no Ocidente?
D’ANGELO – Na Antiguidade, pregava-se a simplicidade como forma de não desviar o ser humano daquilo que era visto como objetivo real da existência: os relacionamentos, a vida em comunidade, a reflexão. Tudo o que viesse do mundo material, como objetos e propriedades, deveria ser visto como meio para atingir essas finalidades, e jamais ser confundido com elas. No Ocidente, a ideia de simplicidade ganhou força com Henry David Thoreau, escritor norte-americano do século 19, que viveu na pele as transformações causadas pelo capitalismo nascente em seu país e sua comunidade, em Concord, na região metropolitana de Boston. Para Thoreau, o sistema econômico imprime uma pressa sem significado ao dia a dia do cidadão, impõe novidades tecnológicas de utilidade duvidosa e o afasta da natureza, das pessoas e da pura e simples contemplação. Mas a simplicidade só se tornou voluntária – ou seja, só ganhou o adjetivo pelo qual a conhecemos hoje – quando o advogado norte-americano Richard Gregg, discípulo de Gandhi, escreveu o livro O Valor da Simplicidade Voluntária, em 1939. A expressão foi retomada nos anos 1970 por dois pesquisadores da Califórnia, que, em meio à crise do petróleo e às incertezas políticas dos EUA, flagraram um movimento crescente de pessoas que simplificavam suas vidas – e, enfim, puseram a expressão e o modo de vida a ela associado na pauta da imprensa e do cidadão comum.

PLANETA – Qual é a razão que mais leva pessoas a optar pela simplicidade voluntária hoje: a preocupação ambiental, a reação ao consumismo, a saturação com o trabalho, a sobriedade religiosa ou a soma de algumas dessas alternativas?
D’ANGELO – Os excessos do consumo e o estresse no trabalho são as mais comuns, pois são as mais generalizadas nas metrópoles ocidentais. A sustentabilidade é uma preocupação crescente, mas ainda pequena frente às anteriores, e o laicismo das sociedades atuais não encoraja a ideia de que a religião promova mais grandes transformações de vida como antigamente.

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Temos acesso hoje a uma infinidade de informações, mas está ao nosso alcance selecioná-las

PLANETA – Thoreau propôs a adesão a uma vida sem luxos, em contato com a natureza e com tempo para a contemplação e a reflexão. Hoje, vivemos em meio a um intenso fluxo de informações propiciado pela internet, que chega a adoentar muitas pessoas, mas que inegavelmente facilita as comunicações e a disseminação de conhecimentos. É possível conciliar essas tendências?
D’ANGELO – Perfeitamente. Alguém já disse que, hoje em dia, somos editores da nossa linha do tempo. Ou seja, por mais que o volume de informações seja elevado, podemos selecionar o que vai aparecer para nós. Além disso, podemos simplesmente ignorar certas ferramentas – eu mesmo optei por não ter um smartphone, por temer o excesso de estímulos que ele oferece. Basta saber estabelecer limites e reconhecer que ignorar parte da informação produzida é mais do que um esforço de seleção ou edição – é medida de sanidade mental.

PLANETA – Como harmonizar progresso, crescimento e desenvolvimento, temas caros ao capitalismo, à simplicidade voluntária? Ou a única saída é “decrescer”, como propõe o economista francês Serge Latouche?
D’ANGELO – O decrescimento, proposta de um grupo de pensadores franceses, assim como o estado estacionário, defendido por um pesquisador canadense, são ideias que valem mais por seu aspecto retórico, provocativo, do que prático. Parece-me inviável contrariar o pensamento do “mais e melhor” e de desafio ao destino, que rege a modernidade, em prol de uma ideia de menos intervenção no ambiente e submissão aos ditames da natureza. Domar o ambiente constitui a aventura do homem na Terra. Mais razoável é pensar que o mesmo locus de onde vêm os problemas é o que vai promover suas soluções: o mercado, a tecnologia – a modernidade, enfim. Porém, não basta delegar a tarefa a esses agentes; são necessárias a mediação e a pressão do Estado. O Estado deve liderar a caminhada a uma nova era, em que o desenvolvimento material se dê em consonância com princípios de preservação ambiental, respeito às diferenças culturais e aos estilos de vida alheios ao establishment.

PLANETA – Simplicidade voluntária é algo acessível apenas para quem já construiu um patrimônio?
D’ANGELO – De fato, todos os exemplos que vi, aqui e no exterior, sugerem que a simplicidade voluntária é um movimento de classe média ou média alta. O sujeito, para enveredar por ele, resguarda as condições de poder retornar ao estilo anterior, mais convencional Além disso, em geral é justamente essa trajetória “convencional” que permite reunir condições para fazer a transição rumo a um estilo de vida menos materialista. Mas convém atentar para um fato. Quando vivemos em maior privação material, tendemos a supervalorizar o que nos falta. Quem passa por dificuldades materiais não se dedica à vida simples porque já vive nela, ainda que involuntariamente – e não percebe vantagem nisso. Quer, por isso mesmo, superá-la, dar lugar à abundância, pois ali reside o que imaginam ser a felicidade. É preciso atingir um certo patamar de afluência para descobrir que ela, por si, não pode entregar todos os benefícios que promete – ao menos, não aqueles de caráter emocional, subjetivo.

PLANETA – Um dos aspectos essenciais da simplicidade é aprender a descartar o que é inútil, de bens materiais a ideias. Como um interessado pode diagnosticar o que é útil e inútil em sua vida?
D’ANGELO – É necessário um período de reflexão, motivado por um desconforto crescente com o rumo tomado por sua vida. É raro que o descarte ocorra por impulso. Em geral, ele é um processo. E, na hora de descartar, Gandhi recomendava: se algo ainda oferece conforto ou ajuda interior, mantenha-o. Pois descartá-lo será doloroso e você passará a desejá-lo de volta.

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Quem tem privações materiais já experimenta a simplicidade, e não vê nenhuma vantagem nisso

PLANETA – A crise de 2008 favoreceu as teses da simplicidade voluntária?
D’ANGELO – Crises econômicas sempre foram propícias à simplicidade. A questão é: quem conserva esse modo de vida depois que a bonança retorna? A revista Time fez matéria de capa sobre a simplicidade em 1991, quando havia uma crise econômica nos EUA em função da Guerra do Golfo. Dez anos depois, procurou os personagens da matéria para saber que fim tinham levado. Praticamente todos tinham voltado ao estilo de vida convencional. Reduzir gastos ou alterar o estilo de vida durante uma crise pode ser apenas um sinal de austeridade temporária, e não de simplicidade voluntária, que independe do cenário econômico.

PLANETA – Em quais países o conceito da simplicidade voluntária está mais presente?
D’ANGELO – Vou especular a partir da origem das principais bibliografias sobre o assunto. Estados Unidos e França, em primeiro lugar, seguidos por Canadá e Alemanha. Nos EUA, a sociedade é tão diversificada e capaz de abrigar manifestações culturais variadas que qualquer tipo de movimento, em algum momento, será bem representado lá. Na França, está presente muito em função da conotação política da simplicidade: adotá-la – ou ao decrescimento – significa se opor ao “capitalismo selvagem”, à exploração do trabalho e à “ditadura” do consumo e das marcas.

PLANETA – E em relação ao Brasil?
D’ANGELO – O Brasil contém diversas rea­lidades. É possível viver à la Primeiro Mundo em uma grande capital sem, contudo, contar com várias facilidades de que um cidadão do Primeiro Mundo dispõe – boa infraestrutura, transporte coletivo eficiente, segurança, etc. É esse o público mais suscetível às ideias da simplicidade: urbano, com ensino superior, de classe média a média alta, de meia-idade e insatisfeito com os rumos da sua vida. Mas a maioria da população sequer pode mostrar-se insatisfeita com esse estilo de vida, pois não pôde prová-lo ainda. Para estes, a evolução pessoal passa pela evolução material. O consumo e a melhora das condições de vida de muita gente, nos últimos anos, apenas reacentuaram a importância desses aspectos para o ideal de felicidade projetado.