20/02/2022 - 14:02
Foi quando nasceu seu primeiro filho, Heitor, em 2010, que o quadrinista paranaense José Aguiar passou a se interessar em pesquisar sobre a infância. Ou melhor: sobre infâncias, no plural, que é a única maneira possível para mergulhar na diversidade de jeitos de ser criança num país tão desigual como o Brasil.
No começo, ele e sua mulher, a professora de alemão Fernanda Baukat, recordaram suas próprias infâncias. Depois foram retrocedendo, buscando entender as de seus avós e “em como os relatos deles eram sobre realidades diferentes das nossas”, lembra Aguiar.
Nesse processo, cada vez mais ele se deparava, na verdade, com histórias de infâncias roubadas, seja por trabalho infantil, seja por violências. E quando se deu conta de que esse processo histórico ainda se repete hoje, é que botou o seu talento nos quadrinhos para trabalhar num projeto.
“Eu sempre quis fazer uma HQ sobre história do Brasil. E voltar no tempo, descobrindo como era crescer em épocas e contextos diferentes, foi a maneira que encontrei para recontar os cinco séculos de história oficial de nosso país. Uma nova abordagem para o assunto. Diferente de como a aprendemos na escola”, comenta ele.
Aguiar ao mesmo tempo traça paralelos e contrasta, por exemplo, os destinos das atuais mães presidiárias e os das antigas escravas. Uma das narrativas é a da menina negra Alexandrina, que vivia em Uberaba e em 1881 teria sido injustamente acusada de roubar dinheiro do senhor de sua mãe. Só que, pela idade dela, nascera sob a Lei do Ventre Livre, e não poderia estar trabalhando como escrava, como tudo indica que estava.
A infância do Brasil foi lançado em 2017 e abocanhou prêmios como o Le Blanc, Minuano e Troféu HQMIX, além de ser finalista do Jabuti. Até então fora de catálogo, está sendo agora relançado em nova edição pela editora Nemo.
DW Brasil: Como surgiu o interesse em pesquisar sobre as infâncias no Brasil? E como foi esse mergulho?
José Aguiar: O nascimento do nosso primeiro filho foi o catalisador da ideia. Minha esposa e eu começamos a recordar nossas próprias infâncias, depois pensamos nas de nossos pais e avós, em como os relatos deles eram sobre realidades diferentes das nossas. Quando pensei no conceito do projeto eu realmente não fazia ideia da profundidade do mergulho ao expor diversas facetas da infância que fogem do lúdico ou do idealizado, as abordagens mais comuns ao tema. De forma alguma eu queria uma visão nostálgica e, nisso, os episódios de violência física e psicológica são um alerta para realidades infelizmente ainda presentes na sociedade brasileira.
Eu não tenho formação de historiador e, por receio de me perder em fontes de qualidade questionável, convidei a historiadora Claudia Regina Baukat Silveira para ser minha consultora. Apresentei a ela meus planos, os temas que queria abordar e os plots para cada capítulo. A partir desse direcionamento, ela fez uma seleção bibliográfica e um levantamento histórico do cotidiano de cada século de nossa história, para embasar os roteiros que eu estava escrevendo. Sobre eles, fazia apontamentos para lapidar o resultado e dar mais verossimilhança às cenas. Muito desse material se encontra nos extras da nova edição do livro.
E por que uma graphic novel sobre o tema?
Gerar uma vida e ajudar essa pessoa a crescer é um processo transformador. Creio que ampliou nossa empatia com outros pais e, claro, seus filhos. São histórias que aproximam pessoas mesmo vindas de histórias de vida diferentes. Ao mesmo tempo, ficamos mais atentos e sensibilizados principalmente com a situação de crianças que víamos diariamente expostas nas ruas e noticiários. A desigualdade ficou mais evidente, agressiva e indignante aos nossos olhos.
Eu sempre quis fazer uma HQ sobre história do Brasil, e voltar no tempo descobrindo como era crescer em épocas e contextos diferentes foi a maneira que encontrei para recontar os cinco séculos de história oficial de nosso país. Uma nova abordagem para o assunto. Diferente de como a aprendemos na escola.
Você acredita que o Brasil negligencia mais, historicamente, a infância do que outros países?
Eu não tenho a autoridade ou a vivência necessária para comparar com outros países. Cada um tem sua história e particularidades. Mesmo ao abordar de maneira escancarada no meu livro, eu só arranho, dentro do nosso contexto, a superfície dessa negligência no Brasil. Mas posso afirmar que, especialmente nos últimos anos, ela aumentou exponencialmente em nosso país devido ao caminho autodestrutivo, negacionista e equivocado que foi adotado nos campos da saúde, educação e cultura. Áreas essenciais para todas as idades.
Mas o seu livro traz muitos episódios de violência contra as infâncias, dentro desse contexto da história brasileira…
O processo de escrita desse livro despertou muitas coisas em mim. Alguns diálogos foram difíceis, pois perpetuam coisas que me desagradam e machucam. Mas estão ali porque são necessários. É difícil escolher entre todas as situações retratadas. Mas certamente entre eles estão a mãe presidiária, que é um paralelo presente com a história do processo da menina nascida sob a Lei do Ventre Livre. Episódio que é o único totalmente inspirado em personagens reais.
Eu fiquei muito envolvido com a questão da criança do século 19, [Alexandrina] a criança negra que foi presa de forma irregular. Esse capítulo foi um mergulho no processo do ocorrido, tentando entender o que teria ocorrido, o que de fato ocorreu. E eu precisava de algo que criasse um vínculo, um paralelo [com situações atuais].
E qual foi sua conclusão?
Estava lendo muito, buscando informações sobre crianças encarceradas. E me deparei com a realidade das mães presidiárias, que eu não conhecia. A partir disso, me conscientizei que tem muitas crianças que nascem em um ambiente prisional. É uma coisa muito cruel, de várias formas. São mães que foram presas grávidas. Na prisão, enfrentam situações terríveis, humilhantes. E, depois disso, depois de um tempo, elas acabam tendo de abrir mão dessas crianças, porque as mesmas podem ficar lá somente até uma certa idade [via de regra, apenas seis meses]. Isso justamente rima com a história, o limite da idade [da Lei do Ventre Livre].
De modo geral, que lições podemos tirar do passado para que passemos a cuidar melhor, enquanto nação, de nossas crianças?
Eu termino cada capítulo ambientado num século passado com um paralelo com uma situação presente, pois acho que o contraste é onde se pode evidenciar não só as diferenças óbvias do espaço-tempo. Mas principalmente as similaridades assustadoras de erros sendo perpetuados e repetidos, graças ao desrespeito com o outro, com as minorias e os mais frágeis. Existem racismo estrutural, misoginia, choque de classes, abandonos e diversos abusos que vêm desde o início da colonização e, entrelaçados, geram situações que precisam ser combatidas e superadas. Por respeito não só às crianças, mas também às mulheres, que sofrem junto delas nesse caldeirão social mal resolvido.
Minha HQ aborda justamente o contraste entre infâncias presentes e passadas para levantar no leitor a pergunta: o que mudou e o que permanece? Eu convido a todos a refletirem o presente a partir de nosso passado para assim buscar entender quem somos. Sem nostalgia fantasiosa, mas de forma consciente, crítica e cientificamente embasada. Em tempos de pós-verdade, auto-verdade e opiniões estapafúrdias, em tempos em que a voz oficial busca narrativas que justifiquem o injustificável, precisamos mais do que nunca saber nossa história.
Só poderemos cuidar de nossas crianças e das que nem nasceram ainda, se tivermos referências que nos permitam evitar repetir os mesmos erros de sempre. Não devemos apagá-los. Temos que confrontá-los para superar essa nossa infância brasileira mal resolvida. Compreender é o primeiro passo para poder escolher um futuro em que é possível seguir em frente, rumo a um país capaz de viver seu melhor.