Muitos militares que retornam do front apresentam sinais de estresse pós-traumático. Problema pode impactar sociedade da Rússia e até gerações futuras, segundo especialistas.O retorno de Alexander Mamayev à Rússia, da frente de batalha na Ucrânia, terminou em tragédia. Durante uma festa, ele se embriagou e matou a esposa a facadas, na frente de seus filhos, por pensar que ela havia pegado dinheiro no bolso de sua calça. Testemunhas que conheciam o homem de 44 anos, natural de Zavolzhye, na região russa de Nizhny Novgorod, disseram ao tribunal que antes da guerra ele era um homem calmo que “não fazia mal a uma mosca”.

Esse é apenas um exemplo dos crimes que os participantes da invasão russa da Ucrânia têm cometido depois de voltar para casa, geralmente sob a influência de álcool. Foi o caso também do sargento Stanislaw Ionkin, que 2023 quis comemorar suas férias do front numa boate. Como contou, houve uma discussão, ele disparou uma pistola de sinalização e provocou um incêndio, que resultou em 13 mortes.

De acordo com o portal em língua russa Verstka, lançado no exterior em 2022, ex-combatentes da guerra na Ucrânia cometeram 190 crimes em dois anos, incluindo 55 assassinatos. Alcoolizados, mais tarde eles se queixaram de sofrer explosões descontroladas raiva. De acordo com psicólogos, este é um sintoma de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Os relatos sobre delitos criminais na Rússia mostram que muitos dos crimes foram cometidos por ex-mercenários do Grupo Wagner.

As autoridades russas lançaram um programa para tratar dos participantes da invasão russa da Ucrânia que estão voltando da frente de batalha e sofrem de TEPT. A demanda é tão grande, que nem todos os afetados conseguem ajuda. Além disso, muitos desses militares recusam tratamento.

Problemas psíquicos

Um dos problemas mais comuns relatados pelos militares nas redes sociais são pesadelos e constantes flashbacks – experiências traumáticas que sempre voltam à memória. Por exemplo, têm a sensação de ser alvejados por arma de fogo, geralmente em locais onde há muita gente ou veículos.

Outros perdem a compostura quando há fogos de artifício, ou têm medo de sair de casa sem uma arma. “Na guerra, você acha que está tudo bem com você. Mas então volta à vida civil e percebe como é diferente. Com o tempo, percebe que mudou por dentro”, comenta um ex-combatente na guerra na Ucrânia.

Andrei (nome alterado), de 23 anos, é um mercenário russo. De acordo com sua namorada, Svetlana, ele mudou muito nos últimos dois anos de guerra: costumava ser falador e alegre, mas agora é um homem retraído e agressivo. “Já muito tempo atrás, quando conversávamos por videochamada, ele disse que estava ficando louco”, conta a jovem. Ela passou a falar com Andrei com menos frequência ao telefone e as respostas dele às mensagens de texto ficaram cada vez mais curtas.

Em 2024, o casal teve uma menina, mas Andrei não visitou a esposa e a filha durante suas últimas férias. “Uma vez, ele escreveu coisas desagradáveis, inclusive sobre a nossa filha. Achei que nosso relacionamento estava no fim. Mas no dia seguinte, pediu desculpas por mensagem de áudio e disse que estava surtando ” Svetlana.espera que a perspectiva de ser pai ajude Andrei a encontrar estabilidade.

De volta ao front

De acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Psiconeurológica Bekhterev, de São Petersburgo, o TEPT pode se desenvolver em 3% a 11% dos veteranos de guerra. Em 2023, as autoridades russas anunciaram a criação de centros de reabilitação para tratar do problema.

De acordo com o Ministério da Saúde, ao longo de seis meses em 2023, procuraram ajuda psicológica 11 mil militares russos que participaram da guerra contra a Ucrânia, assim como familiares seus. Na maioria, eram homens que deixaram o Exército por motivos de saúde ou parentes de soldados mortos. Mas o ministro da Saúde, Mikhail Murashko, teve de admitir que em 2023 apenas 15% dos afetados puderam receber tratamento.

Alguns soldados diagnosticados com TEPT tiveram até mesmo que retornar à frente de batalha. Esse foi o caso de Alexander Strebkov, de 25 anos, convocado para o Exército durante a mobilização. Apesar do diagnóstico de que não deveria portar uma arma, ele foi enviado de volta à zona de guerra.

Alerta sobre distúrbios secundários

Em grandes conflitos militares, como a invasão da Ucrânia, o número de distúrbios psicológicos entre os militares pode ser significativamente maior do que o apontado no estudo do Instituto Bekhterev, afirma um psicoterapeuta russo, sob pedido de anonimato.

Por isso ele espera um aumento dos crimes na Rússia que podem ser atribuídos ao TEPT entre os soldados. “É preciso ter em mente que alguns participantes da guerra, como os do Grupo Wagner, já tinham um passado criminoso. A psique deles pode ter sofrido ainda mais como resultado do combate.”

O terapeuta adverte que o TEPT não tratado pode causar transtornos secundários, e “há também a dependência de álcool ou de substâncias psicotrópicas, o que causa problemas na sociedade”. As famílias são quem mais sofre, o que prejudica a psique das crianças.

“Heroização ilusória”

O tratamento baseia-se em reviver experiências traumáticas, diz o terapeuta, que já aconselhou veteranos das guerras na Tchetchênia, entre outros. “Esse reviver ajuda os pacientes a passarem pela experiência várias vezes”, e a recuperação requer uma média de dez sessões num período de seis meses.

Alguns psicólogos que tratam militares com TEPT tentam glamorizar as experiências de guerra. “Embora isso possa ser um apoio emocional na terapia, em termos de valores humanos, pode fazer a violência e a agressão serem vistas como normais”, adverte o terapeuta. Em vez de “heroização ilusória”, os afetados precisam de ajuda para entender a situação em que se encontram, e os sentimentos de culpa devem ser elaborados.

Ele cita como exemplo a Alemanha após a Segunda Guerra: na época, o termo TEPT ainda não existia, nem o tratamento, mas a sociedade alemã havia reconsiderado seus pontos de vista. “A principal tarefa da terapia é normalizar a vida do paciente, para que ele entenda seus erros e construa uma nova vida, algo a que todos têm direito”, diz o psicoterapeuta sob anonimato.