Um novo estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) revelou que surrar uma criança pode afetar o desenvolvimento do cérebro desse menor de maneiras semelhantes às formas mais graves de violência. O trabalho foi apresentado na revista “Child Development”.

A pesquisa se baseia em estudos que mostram atividade intensificada em certas regiões do cérebro de crianças que sofrem abuso em resposta a sinais de ameaça.

O grupo descobriu que as crianças que foram espancadas tiveram uma resposta neural maior em várias regiões do córtex pré-frontal (PFC, na sigla em inglês). Elas incluem áreas que integram a chamada rede de saliência. Tais áreas do cérebro respondem a estímulos no ambiente que tendem a ter consequências, como uma ameaça, e podem afetar a tomada de decisões e o processamento de situações.

“Sabemos que as crianças cujas famílias usam castigos corporais têm maior probabilidade de desenvolver ansiedade, depressão, distúrbios de comportamento e outros problemas de saúde mental, mas muitas pessoas não consideram surras como uma forma de violência”, disse Katie A. McLaughlin, professora associada de ciências sociais, diretora do Stress & Development Lab do Departamento de Psicologia de Harvard e pesquisadora sênior do estudo. “Neste estudo, queríamos examinar se havia um impacto da surra em nível neurobiológico, em termos de como o cérebro está se desenvolvendo.”

Relação não estudada antes

O castigo corporal, lembram os autores do estudo, tem sido associado ao desenvolvimento de problemas de saúde mental, ansiedade, depressão, distúrbios comportamentais e transtornos por uso de substâncias. Trabalhos recentes mostram que aproximadamente metade dos pais em estudos americanos relataram espancar seus filhos no ano passado, e um terço na semana anterior. No entanto, a relação entre surras e atividade cerebral não havia sido estudada anteriormente.

McLaughlin e seus colegas, incluindo Jorge Cuartas, primeiro autor do estudo e doutorando na Harvard Graduate School of Education, e David Weissman, pós-doutorado no Laboratório de Estresse e Desenvolvimento do Departamento de Psicologia de Harvard, analisaram dados de um grande estudo com crianças de 3 a 11 anos. Eles se concentraram em 147 crianças entre 10 e 11 anos que haviam sido espancadas, excluindo aquelas que também haviam sofrido formas mais graves de violência.

Cada criança estava deitada em um aparelho de ressonância magnética e assistia a uma tela de computador na qual eram exibidas diferentes imagens de atores fazendo caretas “medrosas” e “neutras”. Um scanner capturou a atividade cerebral da criança em resposta a cada tipo de rosto, e essas imagens foram analisadas para determinar se os rostos provocavam padrões diferentes de atividade cerebral em crianças que foram espancadas em comparação com aquelas que não foram.

“Em média, em toda a amostra, rostos de medo provocaram maior ativação do que rostos neutros em muitas regiões do cérebro (…) e crianças que foram espancadas demonstraram maior ativação em várias regiões do PFC para rostos de medo em relação a rostos neutros do que crianças que nunca haviam sido espancadas”, escreveram os pesquisadores. Em contraste, “não havia regiões do cérebro onde a ativação para rostos medrosos em relação a neutros diferisse entre crianças que sofreram abuso e crianças que foram espancadas.”

Vias neurais identificadas

As descobertas estão de acordo com pesquisas semelhantes conduzidas em crianças que sofreram violência severa. Isso sugere que “embora não possamos conceituar o castigo corporal como uma forma de violência, em termos de como o cérebro de uma criança responde, não é tão diferente do abuso”, disse McLaughlin. “É mais uma diferença de grau do que de tipo.”

Segundo os pesquisadores, o estudo é um primeiro passo em direção a uma análise interdisciplinar dos efeitos potenciais das surras no desenvolvimento do cérebro das crianças e nas experiências vividas. “Essas descobertas se alinham com as previsões de outras perspectivas sobre as consequências potenciais do castigo corporal”, estudado em campos como a psicologia do desenvolvimento e o serviço social, disse Cuartas. “Ao identificarmos certas vias neurais que explicam as consequências do castigo corporal no cérebro, poderemos sugerir ainda que esse tipo de castigo pode ser prejudicial para as crianças e teremos mais caminhos para explorá-lo.”

Eles notaram, contudo, que suas descobertas não se aplicam à vida individual de cada criança. “É importante considerar que o castigo corporal não afeta todas as crianças da mesma forma, e as crianças podem ser resilientes se expostas a adversidades potenciais”, disse Cuartas. “Mas a mensagem importante é que o castigo corporal é um risco que pode aumentar os problemas potenciais para o desenvolvimento das crianças e, seguindo um princípio de precaução, os pais e os legisladores devem trabalhar para tentar reduzir sua prevalência.”

No final das contas, acrescentou McLaughlin, “temos esperança de que essa descoberta possa encorajar as famílias a não usar essa estratégia e que possa abrir os olhos das pessoas para as potenciais consequências negativas do castigo corporal de maneiras que elas nunca haviam pensado antes”.