Há 40 anos, primeiro civil que deveria ocupar a Presidência do país após 21 anos de regime militar era internado às pressas na véspera da cerimônia de posse.Foi tensa aquela noite de 40 anos atrás. Era véspera da posse do que seria o primeiro presidente civil no Brasil desde 1964 — selando, portanto, a transição para a democracia. Eleito dois meses antes, de forma indireta, pelo colégio eleitoral, o político peemedebista Tancredo Neves (1910-1985) saiu de um evento religioso em Brasília e, com fortes dores abdominais, foi internado no Hospital de Base do Distrito Federal.

Havia dúvidas políticas e jurídicas sobre a efetividade de que o vice da chapa do PMDB, José Sarney, fosse empossado em seu lugar no dia 15 de março de 1985. A certeza de que aquela seria a melhor solução só veio com o aval das Forças Armadas. No caso, quando o general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015), acertado para ser o ministro do Exército daquele novo governo, passou a tratar Sarney, em reunião emergencial com outros políticos naquela noite, como “presidente”.

Essa incerteza deixava o cenário político especialmente conturbado. A posse de Tancredo representava o fim, de fato, da ditadura. E significava pavimentar o caminho para as eleições diretas e para uma nova Constituição para o país.

“Hoje é fácil dizer que o processo [de redemocratização] estava consolidado”, diz o historiador Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF). “Mas na época houve certo receio de que o processo poderia, se não propriamente retroceder, se tornar mais confuso se houvesse necessidade de nova eleição para presidente.”

Se o cenário se tornasse turbulento institucionalmente, com questionamentos sobre quem, de fato, deveria assumir a presidência, havia riscos. Na análise do historiador Victor Missiato, pesquisador do Instituto Mackenzie, temia-se que “os militares pudessem retroceder, dar um novo golpe ou se manter no poder a partir de algum novo Ato Institucional, por exemplo”.

“Mas os militares já estavam muito desgastados”, pondera. “E eles mesmos já liderado os processos de anistia e de transição democrática, arquitetando sua saída e mantendo suas autonomias. Não havia interesse por parte deles em continuar no poder. Muitas das suas regalias haviam sido resguardadas em uma transição pactuada.”

Internação adiada

Não foi à toa que, soube-se depois, o próprio Tancredo retardou ao máximo a sua internação. Há relatos que ele já vinha sofrendo dores abdominais há algum tempo, mas não buscou tratamento e nem tornou pública a sua doença — depois, noticiada como tumor no intestino.

“Tancredo não desmentiu a doença em nenhum momento, apenas desconversava. A cirurgia em tempo hábil teria salvado a sua vida, mas o afastaria do protagonismo desejado por ele. Apostou no tempo. Perdeu”, diz o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Em meio a incertezas jurídicas e políticas, tentou-se de tudo para acalmar a opinião pública e as altas esferas do poder. No dia 25 de março, por exemplo, divulgou-se uma foto de Tancredo, sentado com visível dificuldade no sofá do hospital, rodeado por médicos sorridentes e buscando passar uma imagem de tranquilidade.

No fim, ao que parecia, era tudo calculado para garantir uma certa governabilidade e legitimidade a Sarney naquele início de mandato. “A agonia de Tancredo foi minimizada e prolongada artificialmente, até limite do impossível. A expectativa de seu restabelecimento e retorno à vida política foi uma cortina de fumaça, manobra diversionista. De outro lado, a ação do próprio governo federal foi canalizada para insuflar a imagem de que tudo estava sendo realizado em plena harmonia. E Tancredo não voltou”, pontua Martinez.

No dia 26 de março, quando as notícias eram de uma piora em seu quadro, o deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Câmara, convocou uma reunião dos parlamentares para buscar reduzir a apreensão — vários políticos planejavam distribuir uma “nota pela legalidade”, questionando a legitimidade de Sarney. Naquele dia, a Bolsa de Valores de São Paulo registrou queda de 5,1%, refletindo o clima de instabilidade política.

Guimarães usava seu prestígio para procurar desinflacionar o cenário. Ele chegou a criticar o que chamou de “sinistroses”, que seriam os comentários “mórbidos sobre a saúde do presidente” e afirmou reiteradamente para a imprensa que, embora estivesse ajudando a montagem dos cargos do novo governo, ele não tencionava montar um “gabinete paralelo” e a autoridade toda era do vice em exercício, Sarney.

Aval foi militar

Com a internação de Tancredo, havia quem defendesse um novo processo eleitoral, já que ele ainda não tinha sido empossado e, portanto, ao pé da letra, o vice ainda não era vice. Neste caso, Guimarães, como presidente da Câmara, seria empossado de forma interina. Ou, como atenta Missiato, também poderia ser “suspenso o processo até que as coisas ficassem mais claras”.

No entanto, naquele 14 de março, a incerteza da posse só foi superada por conta do aval do general Leônidas Pires Gonçalves. Em reunião da qual participaram Sarney e também Ulysses Guimarães, ele teria cravado: “quem assume é o Sarney”. O gesto, vindo de uma autoridade das Forças Armadas que comandavam o Brasil desde 1964, serviu para dissipar as outras alternativas.

“A solução foi política e não jurídica. A incerteza era quanto à conduta das Forças Armadas que haviam imposto a passagem para o governo civil sem a participação popular e o julgamento das atrocidades da ditadura”, contextualiza Martinez.

Interesses

Oficializar Sarney como presidente era, naquela situação, o mais conveniente para a maior parte dos políticos, tantos os remanescentes da ditadura quanto os que costuravam a transição democrática.

Com uma trajetória que fez dele uma espécie de líder civil da ditadura, ele era muito palatável aos militares. Ao mesmo tempo, para os democratas que costuravam a transição para a normalidade, não significava necessariamente um retrocesso: parecia comprometido em levar adiante as pautas das eleições diretas e da constituinte.

Uma quebra nesse processo, por outro lado, poderia significar o poder nas mãos de Guimarães, visto pelos militares como um opositor mais aguerrido. Ou ainda que o cenário “despertasse o poder de barganha da Arena [o partido que dava sustentação à ditadura]”, conforme avalia o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo. “Seria um contrassenso [na luta pela redemocratização]”, diz ele. “Afinal, a Arena era o partido de Paulo Maluf e concentrava todo o histórico de apoio aos militares.”

Ramirez entende que os riscos maiores seriam se o episódio da internação de Tancredo Neves desencadeasse “um processo de deslegitimação” de toda a transição democrática, caso Sarney não assumisse a presidência e, de certa forma, impedisse a concretização a passagem de bastão do poder militar para o civil. “Isso poderia anular o processo de transição legítima”, comenta.

Durante o período de internação, Tancredo Neves foi submetido a sete cirurgias. Ele morreria em 21 de abril. Sem nunca ter tomado posse como presidente do Brasil.