“Teremos descoberto a Atlântida enterrada?”, escreveu cheio de entusiasmo Henri Lhote em seu caderno de notas, em 1933. Ao tomar conhecimento do conteúdo do relatório de uma patrulha do exército francês na bacia do oued (curso d’água) Djerat, esse explorador e etnólogo francês correu para o sudeste do Saara argelino. O que deveria ser uma simples visita científica se converteu logo numa longa exploração arqueológica que durou 18 meses. O que Lhote descobriu nas montanhas de Tassili n’Ajjer superou todas as suas expectativas: as paredes rochosas desse desfiladeiro de 30 quilômetros de extensão estavam literalmente cobertas de inscrições e, sobretudo, de pinturas rupestres.

Essas pinturas dão testemunho de um mundo único. Nelas, girafas, elefantes, antílopes, leões, bovídeos e cavalos narram a vida dos caçadores e dos pastores de outrora. Tais imagens documentam um Saara verdejante, cheio de vida animal e humana, antes que uma mudança radical do clima na região pusesse fim a um período de abundância sobre esse planalto de 700 quilômetros de extensão por 100 quilômetros de largura. É simplesmente impressionante o contraste entre o que se observa nessas pinturas e a paisagem de deserto árido na qual a região se tornou desde então.

Lhote identificou quatro estilos sucessivos na execução dessas pinturas e inscrições, cujas datações e características foram depois aperfeiçoadas por outros especialistas. O primeiro período é o das “cabeças redondas”, caracterizado por desenhos inteiramente cor violeta de seres humanos nus, sem diferenciação de sexo. Após a descoberta de tons ocres, as pinturas se tornam mais detalhadas: já é possível distinguir-se a musculatura das pernas e dos braços. Pinturas e inscrições de animais como o búfalo gigante, já extinto, também se encontram entre esses primeiros trabalhos.

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“Grande deus de Sefar”, arte que retrata uma divindade ou xamã em Tassili n’Ajjer. Crédito: http://sahara-eliki.org/SLIDESHOW/circuit/rupestre/images/Wikimedia
Novas cores

As primeiras populações de pastores sedentários do Tassili descobriram então novas cores. A mistura do vermelho e do branco com o ocre, já conhecido, possibilitou uma vasta paleta de nuances, do amarelo claro ao chocolate. Já as pinturas do “período dos bovídeos” correspondem à chegada de bovinos à África do Norte, ao redor de 4500 a.C., e que durou até meados do terceiro milênio antes de Cristo.

Nessa fase, as proporções da pessoa representada são bem exageradas: parece que o importante era o tamanho, e não a beleza. Ao mesmo tempo, homens e animais ganham em termos de realismo. Rebanhos e pastores parecem correr com a velocidade do vento. Perto dessas imagens, nas mesmas paredes de pedra, outras pinturas mostram homens que se banham nas águas de um rio.

A seguir, representações de cavalos mostram um progressivo desenvolvimento cultural dos habitantes do Tassili. É o “período dos cavalos”, que corresponde à introdução desses animais no norte da África, segundo atestam descobertas arqueológicas, em cerca de 2000 a.C.

Homens (alguns armados) e animais são retratados. Crédito: Gruban/Wikimedia
Camelos e dromedários

Finalmente, ao redor dos anos em que Jesus Cristo viveu, tem início no Tassili um “período dos camelos”, também correspondendo aos tempos em que esses animais (na verdade dromedários) surgiram na África do Norte. Pouco a pouco, os dromedários se tornam os animais de carga por excelência na região, ao mesmo tempo que, curiosamente, a pintura rupestre perde sua importância na vida das comunidades humanas.

No Tassili, o período dos camelos assinala o retorno ao desenho rudimentar. As descrições de cenas do cotidiano tornam-se cada vez menos realistas. Ao mesmo tempo, as pinturas começam a apresentar outros elementos, tais como carruagens e escudos, além dos já citados dromedários.

Arte independente

Embora próxima da Península Ibérica – onde também existe abundância de arte rupestre primitiva –, acredita-se que essa arte na Argélia e sobretudo no Tassili se desenvolveu de forma independente dos estilos da Europa.

Quanto às pinturas do período das “cabeças redondas”, Lhote observou um importante paralelo estilístico com os desenhos da antigüidade egípcia. Ele descobriu inclusive seis desenhos de barcos de um modelo de uso corrente no Nilo.

“Os pastores do Tassili mantinham uma relação com a civilização egípcia. Eles provavelmente vieram do leste e se fixaram aqui”, conclui o arqueólogo. Ao mesmo tempo, vários elementos de outros desenhos sugerem que parte dos habitantes do Tassili não era originária do Egito, e sim da África Negra.

Henri Lhote, em viagem à Mauritânia em 1967, ao lado de arte rupestre. Crédito: gbaku/Fllickr/Wikimedia
O apaixonado Lhote

Durante os 16 meses de duração de sua viagem ao Tassili, Henri Lhote não limitou seu trabalho a simples levantamentos do material encontrado na área. Indo muito mais além, ele classificou as pinturas, estabeleceu grupos e conjuntos com características bem definidas, procurou atribuir a eles um lugar no tempo. Nasceu assim a primeira classificação das pinturas do Saara central, da qual as linhas principais se ajustam perfeitamente às classificações de arte rupestre estabelecidas por outros estudiosos como Flamand e Monod.

Os primeiros croquis das pinturas e inscrições rupestres do Tassili foram feitos, no fim da década de 1930, pelo tenente Brenans, eminente especialista em pré-história que acompanhou Lhote na região de Djanet. O sonho de ambos era tornar conhecidos no mundo os misteriosos desenhos do Tassili. Eles foram finalmente apresentados ao mundo científico no congresso de pré-história realizado em Argel em 1952.

Pinturas do “período dos bovídeos”, de cerca de 4500 a.C. Crédito: Wikimedia

Em 1956, o Museu do Homem de Paris, na França, chamou Lhote para dirigir uma grande campanha destinada a inventariar o acervo rupestre do Tassili. A descoberta desses desenhos constituiu o acontecimento mais importante no setor das pesquisas sobre pré-história naquela época.

“Não descobrimos a Atlântida”, admitiu Lhote ao final de sua viagem ao Tassili, “mas aprendemos algo muito mais importante. Podemos provar que o Saara central é, desde o Neolítico, um dos mais importantes sítios de colonização da pré-história. Há muito tempo, o deserto estava recoberto por gigantescos prados verdejantes e povoado por numerosas civilizações que nos deixaram o testemunho de sua existência.”

Foto aérea da região de Tassili n’Ajjer, no sudeste da Argélia. Crédito: Dagelf/Wikimedia

Tassili n’Ajjer: patrimônio em perfil

Patrimônio cultural e natural: no parque nacional de 80 mil quilômetros quadrados do “Vale do Rio Djerat” (Oued al Djerat) existem mais de 15 mil pinturas e inscrições rupestres. Elas representam sobretudo hipopótamos, búfalos, elefantes, rinocerontes e girafas e retratam as tremendas mudanças climáticas ocorridas na região. Elas não apenas modificaram a fauna e a flora, mas também influenciaram os rumos da evolução humana no local. Parcialmente protegido desde 1972, o planalto do Tassili e o Maciço do Adrar se situam no sudeste do Deserto do Saara, entre 1.150 e 2.158 metros de altitude. O clima da região é seco, com pluviosidade média de 30 mm por ano.

Continente: África

País: Argélia, na fronteira com o Níger e a Líbia.

Lugar: Parque Nacional do Tassili n’Ajjer, a noroeste de Djanet.

Inscrição no Patrimônio Mundial da Unesco: 1982

Interesse: um dos mais importantes sítios de arte rupestre do mundo, situado dentro de uma “floresta de arenito”.

Flora e fauna: 28 espécies de plantas indígenas raras, como o Ficus ingens e, no Vale dos Ciprestes, 100 ciprestes da espécie Cupressus dupreziana, da qual restam apenas 240 espécimes no mundo todo, oliveiras, murtas e várias espécies endêmicas. Composta ainda por 23 espécies de mamíferos, como a gazela dorca, o carneiro “com mangas”, o guepardo, o caracal (gato selvagem) e pássaros migratórios como a garça púrpura e a cegonha branca, além de vários rapaces.

Petróglifo representando um antílope possivelmente adormecido, localizado em Tin Taghirt, no Tassili n’Ajjer. Crédito: Linus Wolf/Wikimedia

Cronologia

7500 ou 6000 a.C.: o habitat mais antigo e as mais velhas pinturas rupestres naturalistas, do “período das cabeças redondas”.

5000 a 2500-2000 a.C.: pinturas rupestres do “período dos bovídeos”.

Cerca de 1500 a.C.: pinturas e inscrições do “período dos cavalos”.

Cerca de 200 a.C.: representações de caravanas de camelos.

1847: descoberta do sítio por um oficial das forças coloniais francesas.

1933: viagem do arqueólogo Henri Lhote ao sudeste do Saara argelino.