01/07/2010 - 0:00
As nuvens escuras se acumulam, o vento passa a soprar mais forte e a chuva enfim desaba, grossa, acompanhada de relâmpagos e trovões: eis a síntese de um temporal daqueles que nós, habitantes dos trópicos, estamos acostumados a ver. Mas as tempestades do século 21 parecem estar vindo em novas versões, atualizadas, aprimoradas – e muito mais perigosas. São Paulo e Rio de Janeiro já estão experimentando esse efeito.
Os temporais entram na categoria de eventos extremos previstos como uma das consequências do aquecimento global. De acordo com um estudo da Universidade de Purdue (Estados Unidos) divulgado no fim de 2008, as elevações de temperatura derivadas das mudanças climáticas já são suficientemente significativas para provocar um aumento no número de tempestades severas (caracterizadas por chuvas pesadas, inundações repentinas, ventos destruidores, relâmpagos, queda de granizo e eventual formação de tornados).
A pesquisa mostrou ainda que, por volta do final deste século, o número de dias favoráveis à ocorrência de tempestades severas poderá mais que dobrar em determinadas localidades com grande concentração populacional, nas quais se incluem metrópoles como Nova York e Atlanta. Tal incremento ocorreria justamente nas temporadas típicas de tempestades, em vez dos meses mais secos, e elevaria os riscos para a vida e as propriedades dos habitantes dessas regiões.
É um problema e tanto, principalmente se considerarmos que, a qualquer momento, 2 mil tempestades com trovoadas se desenvolvem no mundo, segundo o Laboratório Nacional de Tempestades Severas (NSSL, na sigla em inglês), órgão ligado à Administração Nacional Oceanográfica e Atmosférica (NOAA) – a agência do Departamento de Comércio dos Estados Unidos voltada para meteorologia, oceanos, atmosfera e clima. Pelo levantamento do NSSL, as tempestades severas respondem anualmente por cerca de US$ 2 bilhões em danos materiais e mais de 100 mortes apenas nos EUA.
A formação de um temporal não é difícil. As nuvens de tempestade surgem à medida que a umidade evapora do solo e segue rumo à atmosfera. Conforme atinge altitudes mais elevadas, o ar se resfria rapidamente. Uma frente fria (a fronteira que marca o encontro de uma massa de ar frio com o ar circundante) ou uma sucessão de colinas ajudam a empurrar o ar quente e úmido para cima, onde a temperatura está mais baixa. O ar úmido se resfria e condensa o vapor d’água em pequenas partículas na parte da nuvem denominada núcleo de condensação (fragmentos de matéria sólida que retêm água, como poeira e fumaça). Conforme mais vapor d’água se transforma em líquido e mais ar úmido se aquece e se movimenta para cima na atmosfera, gotas d’água maiores e mais pesadas se formam, criando-se assim as condições para as tempestades.
Esse fenômeno natural ganhou novos contornos com a participação humana. Um deles são as cidades, onde asfalto e concreto absorvem mais calor comparado ao que ocorre na zona rural e os edifícios impedem o fluxo livre do ar. A poluição e até eventos localizados de duração relativamente curta, como os congestionamentos de trânsito, também apresentam impactos nesse setor.
Sul mais úmido, Nordeste mais seco
No Brasil, as tempestades da era do aquecimento global vão castigar sobretudo a Região Sul, onde o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) constatou que, nos últimos 100 anos, houve maior número de dias com alta umidade do ar e dias chuvosos, afirma o meteorologista José Fernando Pesquero, do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/Inpe). Muitos gaúchos, catarinenses e paranaenses, habituados a conviver com inundações nos últimos anos, certamente dão razão a ele. Por outro lado, a área central do Nordeste e a parte norte do Sudeste tenderão a enfrentar cada vez mais a seca
“São Paulo e Rio estão em uma área de transição entre dois extremos, o que mostra que sobre essas cidades há grande variação entre períodos muito secos e outros muito chuvosos”, ressalta Pesquero. O meteorologista é cauteloso ao falar de uma relação próxima entre fatos isolados como tempestades e o cenário de aquecimento global. “Precisamos analisar uma área maior por um longo período, de no mínimo 30 anos”, avalia. De qualquer modo, ele observa que a temperatura do planeta já está quase 0,8ºC acima do normal, o que aumenta em cerca de 5% a taxa de umidade habitual na atmosfera. O resultado disso, afirma Pesquero, é um incremento significativo de precipitações onde existem precipitações e secas onde já se registra ausência de chuvas.
Os efeitos das cidades sobre o clima foram objeto de um amplo estudo ainda nos anos 1970: o Metropolitan Meteorological Experiment (Metromex), que durante seis anos acompanhou a atmosfera durante o verão sobre a área metropolitana de Saint Louis, no Estado de Illinois (EUA). Os pesquisadores concluíram que o ambiente urbano causou um aumento de 45% nas trovoadas e de 83% em raios, afora um incremento de chuvas entre 5% e 25% com o vento próximo da cidade e soprando em sua direção. Os dados coletados mostraram que houve ainda mais dias com granizo e maior intensidade de queda dessas pedras.
De acordo com o hidrometeorologista Alexandros Ntelekos, que avalia riscos de catástrofes para a corretora de seguros Willis Analytics, de Londres, são três as principais maneiras pelas quais as cidades modificam a dinâmica dos temporais:
1- ILHA DE CALOR URBANA – O concreto e o asfalto que recobrem as vias urbanas se aquecem mais rapidamente durante o dia na comparação com florestas e pastagens. Além disso, o consumo de energia também libera calor. Ntelekos ressalta que o resultado é uma diferença de temperatura no solo de até 3ºC na comparação com a zona rural circundante (mas em São Paulo esse intervalo já chegou a 10ºC, observa o meteorologista do Inpe José Fernando Pesquero). Como as temperaturas nas camadas mais altas da atmosfera não são afetadas, o ar dessa ilha de calor, mais dinâmico, subirá numa corrente ascendente até encontrar um volume de ar que esteja com a mesma intensidade. Está, assim, preparada uma tempestade. “Massas de ar que se aproximam serão aquecidas e erguidas quando chegarem perto da cidade; o ar ficará saturado e você poderá ter mais chuva”, afirma Ntelekos.
2- EDIFÍCIOS E INFRAESTRUTURA – Ao chegar à cidade, o vento é obstruído no nível do solo pelas construções humanas. Enquanto seu avanço é retardado, mais ar continua a chegar, o que acaba por formar uma “represa” de ar. Isso faz com que uma parcela desse ar suba ao longo da obstrução. Se ele estiver suficientemente úmido e ocorrer condensação, as condições para um temporal estarão formadas.
Ntelekos analisou os dados de uma tempestade severa sobre Baltimore (EUA), em 2004, que foi recordista em termos de chuva e raios observados. Pelos cálculos do hidrometeorologista, a cidade recebeu então cerca de 30% mais chuva do que teria ocorrido se não houvesse prédios ali.
3- POLUIÇÃO – Esse fator ainda não é suficientemente compreendido, mas Ntelekos e outros cientistas, como Daniel Rosenfeld, da Universidade Hebraica de Jerusalém, já notaram que ele tanto amplifica como evita as tempestades. Concentrações maiores de partículas poluentes levam à formação de um número maior de gotículas d’água menores, as quais precisam de mais tempo para se agrupar em gotas de chuva. Isso atrasa o início das precipitações, mas também pode prolongar a duração da tempestade. Segundo Rosenfeld, em certos casos a duração mais longa favorece o transporte de mais água em estado líquido para a parte superior da nuvem, onde ela se congela, liberando calor e, posteriormente, fortalecendo a tempestade.
Temporais vespertinos em Nova York foram analisados por Ntelekos e confirmaram as características da influência da poluição. “[…] vimos casos em que tivemos incremento de 30% a 40% na precipitação devido a níveis de poluição aumentados quando as condições atmosféricas foram favoráveis”, disse ele. “Mas, se algum ingrediente para uma tempestade está escasso, então a poluição enfraquece a tempestade e suprime a chuva.”
Poluição pode aumentar e evitar tempestades
As cidades são a parte mais visível da influência humana sobre os temporais, mas ela não se restringe a isso. As mudanças climáticas devem aumentar a força das tempestades onde quer que elas ocorram em terra, afirma o modelador de clima (pesquisador que produz previsões baseadas em medições históricas) Tony Del Genio, do Goddard Institute for Space Studies da Nasa, em Nova York.
Para ele, como as temperaturas na superfície dos mares e na atmosfera acima deles vão subir a uma taxa parecida, os temporais nessas regiões não deverão ser mais fortes. Já a superfície da terra se aquecerá mais rapidamente do que a dos oceanos, aumentando a diferença de temperatura entre a terra e a atmosfera, e isso favorecerá a ocorrência de tempestades severas. Mas não em todas as terras emersas: muitos locais poderão ficar mais secos, com pouca ou nenhuma umidade, o que não oferecerá condições para a formação de temporais.
“Não pensamos necessariamente que haverá mais tempestades em um clima mais quente”, diz Del Genio. “[Mas] quando o ar úmido enfim chegar vindo de algum outro local, as coisas estarão realmente preparadas para explodir.” Segundo ele, as regiões mais afetadas incluem a Bacia Amazônica, a América Central, os EUA, o sudeste da Ásia, a África Central e o norte da Austrália.
De qualquer modo, as áreas urbanizadas deverão mesmo estar na linha de frente das tempestades do século 21. E os presentes e futuros responsáveis pelas cidades terão de mostrar se sabem trabalhar em meio a essas condições adversas ou se são especializados apenas em subterfúgios e desculpas esfarrapadas.
Campeão mundial de raios
É um título que não merece comemoração: o Brasil ocupa a liderança mundial na incidência de raios. Em uma década apenas, foram cerca de 57 milhões de descargas, responsáveis por 1.321 mortes, de acordo com o Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os pesquisadores do Inpe notaram que o número de raios tende a aumentar por aqui e iniciaram um estudo, a ser concluído em 2013, para investigar a relação entre o incremento dessas descargas elétricas e o aquecimento global. A hipótese inicial é de que a elevação de um grau centígrado na temperatura acarreta um incremento de 10% a 20% na incidência de raios. As informações coletadas serão analisadas pelo Inpe e por quatro instituições norte-americanas: a Nasa, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) e a Universidade do Arizona.