25/04/2016 - 19:01
A luz dourada do entardecer ilumina um paredão rochoso gigantesco no norte de Barcelos (AM), descortinando paisagens em um vale profundo. O deslumbramento é coletivo entre os tripulantes do Jacaré-Açu, uma embarcação típica amazonense adaptada para transportar grupos de estrangeiros e expedições científicas.
Navegamos no alto rio Aracá, próximo à divisa entre Amazonas e Roraima. Nessa porção remota da Amazônia, um relevo imponente e pouco explorado quebra a linearidade da planície amazônica e marca o extremo sul do Planalto das Guianas.
É o fim do terceiro dia seguido deslizando sobre as águas escuras dos rios Negro e Aracá, em uma viagem que começou no município de Novo Airão, três horas de carro a noroeste de Manaus. Sobre o deque superior do barco, o grupo de dez pessoas, paulistas na maioria, entre médicos, geólogos, jornalistas, fotógrafos e empresários, aguarda com ansiedade a chegada ao objetivo da missão: o topo do Monte Tantalita, de onde despenca a cachoeira do Eldorado ou Aracá, a queda d’água mais alta do Brasil, com 353 metros de altura.
Estamos a bordo da Expedição Katerre, uma viagem anual à Serra do Aracá, conduzida pelo guia local Tito Rodrigues e organizada por duas empresas especializadas nesse tipo de jornada, a Turismo Consciente, de São Paulo, e a Katerre, no Amazonas.
Os barcos da Katerre servem a um público em geral estrangeiro, e raramente atendem à demanda do mercado nacional de viagens. “A Serra do Aracá é um destino de difícil acesso e ainda muito pouco conhecido. Organizamos a logística dessa expedição conforme a procura, o que não é lá muito frequente”, conta o guia.
Apesar de pertencer ao parque estadual homônimo e ser terra reivindicada pelo povo ianomâmi, a Serra do Aracá é desabitada. Os poucos que aparecem por lá (em média uma vez ao ano) são os guias da Katerre, única empresa autorizada pelo governo para conduzir expedições à região.
Troca de embarcação
No início da noite, no jantar, o capitão Kleber Bechara se mostra preocupado com a falta de chuva. “O nível do rio está baixo e isso aumenta o risco de o barco encalhar”, alerta. A partir desse momento, o Jacaré-Açu terá de ficar ali. “A expedição segue em lanchas voadeiras”, decide Bechara. “O plano é deixar o Jacaré-Açu às 5 horas da manhã e chegar ao pé da serra no fim da tarde”.
Durante a madrugada, as quatro lanchas são carregadas com barracas, mochilas e mantimentos para cinco dias de caminhada na mata. Partimos com o céu ainda escuro. O trajeto das voadeiras é orientado por Celestino dos Reis e Alessandro Souza, dois experientes caboclos da comunidade de Romão, o último povoado visitado antes da parada do barco.
Pilotando pelo estreito igarapé Jauari, Alessandro desvia habilmente de bancos de areia. Por vezes, ele se vê obrigado a desligar o motor, para Celestino “torá as gaiada”, ou seja, cortar com uma motosserra os galhos de árvores caídas. A viagem segue por um curso d’água ainda mais estreito, o igarapé Preto, cujas águas provêm da cachoeira do Aracá. Doze horas depois de deixar o Jacaré-Açu, com direito a muitas paradas para banhos, lanchinhos e descansos em praias sombreadas, o grupo chega ao ponto inicial da trilha para subir a serra.
Passamos a noite acampados e, pela manhã, iniciamos a subida caminhando por uma mata densa. O calor é opressivo. Plantas com espinhos e animais rastejantes, como aranhas caranguejeiras, escorpiões, cobras e formigas são companhias frequentes. As roupas encharcam de suor, os óculos embaçam com a umidade.
Escalada e caminhada
Após três horas de trilha, uma parada na metade do caminho nos deixa observar o dossel da floresta a partir de um mirante privilegiado. O silêncio é quebrado apenas por um casal de araras-canindé, em um voo rasante sobre a copa das árvores. Liderando o grupo, o guia Tito e seu pupilo Noah são os primeiros a vencer o desnível de 600 metros da base ao topo, percorrendo uma fenda no paredão rochoso. Mais duas horas e meia caminhando sobre o topo semiplano da montanha, coberto de vegetação arbustiva, e chegamos ao local do acampamento, a 960 metros de altitude.
O Monte Tantalita é uma mesa com morfologia parecida à do Monte Roraima e a outros tepuys, elevações de mesmo formato encontradas em abundância no sul das Guianas e da Venezuela. Seu nome vem do mineral homônimo existente em sua composição geológica.
Avistamos a distância o ponto mais alto: uma saliência côncava sobre a mesa, chamada de Pico Nossa Senhora Auxiliadora, cujo cume nunca foi conquistado nem medido. Tito sonha em ser o primeiro, mas diz que está longe de alcançá-lo. “Para chegar lá, precisaríamos contratar uma equipe de mateiros por vários dias, abrindo caminho com facão através da mata densa para mais de dez quilômetros a partir do acampamento”, ele calcula, desanimado. Fotografamos o relevo a distância, escutando Tito relatar suas histórias e sonhos.
Com a ajuda dos carregadores, montamos as barracas ao lado de uma piscina natural enorme, onde as águas do igarapé Preto são represadas antes de despencar pela borda do paredão. Poucos metros adiante e estamos na beira de um abismo vertiginoso.
Descoberta nos anos 1980 em um sobrevoo militar, a cachoeira do Aracá supera os 340 metros da famosa Cachoeira da Fumaça, no Parque Nacional da Chapada Diamantina (BA), por muito tempo considerada a mais alta do Brasil. O título foi desbancado em 2001, quando uma equipe do programa Globo Repórter acompanhou uma expedição à cachoeira do Aracá, onde se mediu a altura da queda com cordas, em uma manobra de rapel.
Poço desafiador
Com exceção da breve presença da equipe que trabalhou na medição, o poço na parte baixa da cachoeira do Aracá nunca foi alcançado. Três anos atrás, Tito tentou chegar a ele subindo o igarapé Preto a pé, escalando as pedras que o margeiam. Porém, a menos de dois quilômetros da queda, o guia se deparou com um degrau intransponível. Desde então, ele sonha em organizar uma nova expedição e trazer uma dupla de experientes escaladores em rocha para ajudá-lo a transpor o obstáculo e fazer dos três os primeiros homens a tomar banho na cachoeira mais alta do Brasil.
Parceiros de trilha, o médico Alcionei Aparecido e o geólogo André Toczeck correm até a beira do paredão para fotografar as centenas de andorinhas que se revezam em revoadas ao lado da queda. Deitados de bruços sobre a rocha, eles desafiam o medo e a vertigem, enquanto os outros colegas de expedição se aproximam lentamente. “A dimensão de cada elemento da paisagem aqui deixa as mesas da Chapada Diamantina parecendo miniaturas!”, exclama André, deslumbrado.
Um dia inteiro é gasto no topo com sucessivos banhos de rio e explorações a pé a diferentes mirantes nos arredores. Protegendo-se da chuva sob um toldo plástico, preparamos o jantar simples em uma fogueira: macarrão com linguiça. No dia seguinte, o caminho de volta se faz a passo lento. A descida íngreme pela fenda exige atenção e cuidado. Após dois dias de caminhada e mais 12 horas em lanchas voadeiras, estamos de volta ao Jacaré-Açu para mais três dias de navegação rumo a Novo Airão, onde o conforto do hotel de selva Mirante do Gavião nos espera.
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Mais informações
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