Uma muralha superlativa: 2,5 quilômetros de extensão, 12 metros de altura e 88 torres.

 

Vista de longe, a grande muralha que cerca a cidade de Ávila, no centro da Espanha, não deixa entrever os trechos atualmente cobertos por andaimes, gruas, tapumes e equipamentos de engenharia. As dimensões extraordinárias tornam as interferências pouco visíveis, embora tudo esteja lá, ajudando a manter essa joia arquitetônica do século 12, tombada pela Unesco como Patrimônio Histórico da Humanidade desde 1995. Técnicas modernas de engenharia tornam os trabalhos discretos e revelam que manter um monumento dessa magnitude custa caro.

Se qualquer construção já necessita de cuidado para enfrentar o passar do tempo, imagine uma muralha com 9 séculos de existência, 2,5 quilômetros de extensão, 12 metros de altura, 88 torres e 9 portais de acesso, um intrincado xadrez de pedra, madeira e materiais rudimentares.

 

 

Considerada a mais bem preservada de toda a Europa, a muralha de Ávila surpreende pela beleza e por seu aspecto intacto. Pode parecer exagero, mas em muitos trechos parece ter sido levantada há poucos anos, tal o estado perfeito de conservação. A construção envolve toda a cidade, que também é Patrimônio da Humanidade e guarda tesouros como o Monasterio de la Encarnación, onde viveu Santa Teresa, além de uma catedral românica também iniciada no século 12.

 

Destaques culinários locais: os doces de gemas de Santa Teresa e o feijão Ávila del Barco.

 

A muralha de Ávila começou a ser erguida em 1091 sobre uma paliçada romana que a cidade já possuía. Além do conhecimento dos grandes mestres em geometria e engenharia da época, foram empregados mais de dois mil trabalhadores na obra, o que permitiu que fosse finalizada em 1099, apenas oito anos mais tarde. Primeiramente foi erguida na parte mais baixa da cidade, que margeia o Rio Adaja, sempre com a função de proteger a população de ataques inimigos. Da parte mais alta tem-se uma visão estratégica de toda a região.

A proteção militar era um assunto seriíssimo no século 12. Ávila acumula uma história de ocupações realizadas por vários exércitos e povos, a principal no século 8, quando os árabes, vindos do norte da África, dominaram toda a Península Ibérica. Dois séculos depois, em 1088, os mouros foram expulsos pelo rei espanhol dom Afonso 6o, que ordenou a construção da grande barreira para garantir a sobrevivência dos sofridos moradores. Hoje, Ávila é invadida todos os anos por milhares de turistas que se maravilham com uma das principais marcas arquitetônicas do país. Circula- se livremente sobre a fortaleza, desfrutando de uma excelente culinária, uma vista da cidade intra e extramuros e um emocionante retorno à época medieval espanhola.

Apesar da crise econômica e do desemprego que afetam 20% dos espanhóis, o país já investiu 4,3 milhões de euros na conservação da muralha de Ávila.

O vento forte no alto das torres e a visão do horizonte nos fazem voltar no tempo. A caminhada permite conhecer o monumento da perspectiva de quem, há mais de 900 anos, arriscou- se para defender o valioso patrimônio e a própria vida.

A muralha continua a cumprir seu papel de barreira intransponível, ainda que sob ameaças muito diferentes. Atualmente, os dois principais problemas são a poluição, que corrói a argamassa que mantém a estrutura, e os automóveis, que fazem trepidar a base das pedras e provocam rachaduras.

 

Fortaleza de investimentos

Símbolo da cultura espanhola, Ávila ajuda a perceber o quanto é necessário proteger o patrimônio histórico e arquitetônico, mesmo sob os efeitos da forte crise econômica, como a que assola a Espanha desde 2009. Sob uma taxa de desemprego recorde (20,3% da força de trabalho está desocupada) e uma forte retração de investimentos, a Espanha aposta que manter seus alicerces históricos pode ser uma saída, principalmente tratando-se de um país que tem no turismo uma grande fonte de renda.

Em 2010, 50 milhões de turistas visitaram o território espanhol, deixando ali 49 bilhões de euros, o que justifica os investimentos em preservação cultural. Desde 2004, o governo do país destinou 4,3 milhões de euros para a conservação da muralha de Ávila, sem contar os aportes provenientes da prefeitura da cidade, subsídios do Ministério da Cultura, convênios com empresas e recursos de entidades ligadas à preservação. O montante chega a 7 milhões de euros, quase 1 milhão em cada ano.

Em 2008, o governo investiu 550 mil euros só para restaurar o Arco de San Vicente, um dos nove portais de acesso à cidade intramuros. De acordo com os moradores, a peça estava prestes a ruir, mas o dinheiro chegou a tempo e os consertos foram feitos. No final de 2010, 400 mil euros foram destinados para obras de emergência, principalmente eliminação de umidade e conserto de fissuras.

Rosa Ruiz Entrecanales, arqueóloga municipal, considera que, além da idade da muralha, um dos grandes problemas de conservação é o impacto do tráfego de automóveis e de ônibus turísticos, que circulam próximos à construção, embora haja restrições em muitos locais e períodos do dia. Outros problemas são as patologias próprias de edificações desse tipo, como o desgaste da cimentação e da argamassa que une as grandes rochas.

 

“O trabalho é intenso, pois esse tipo de problema exige que a muralha esteja em permanente estado de observação, ao mesmo tempo que os equipamentos usados precisam interferir o mínimo possível no aspecto visual da muralha”, completa a especialista. Graças às novas técnicas, os andaimes ficaram cada vez mais sutis e é possível percorrer toda a muralha sem percebê-los.

Para quem quer ver o conjunto na plenitude, há um local fora da cidade amuralhada onde a interferência das obras desaparece. O Mirador de los Cuatro Postes, a cerca de 1,5 quilômetro da cidade, permite uma visão completa. Os quatro postes referemse a quatro colunas em estilo romano que podem ser vistas ao longe. O mirante também está ligado a uma das mais importantes personagens da história de Ávila: Santa Teresa. A lenda reza que a santa teria chegado ali com seu irmão, em 1535, para entrar na cidade e internar-se no Convento de la Anunciación, das carmelitas.

É para o Mirador que segue a maioria dos visitantes no final de tarde. Turistas vindos de várias partes do mundo se unem para ver o sol que se põe avermelhando tudo, colorindo a velha barreira de pedras. Diante da imagem magnífica é fácil perceber a importância da preservação desse patrimônio histórico, maior riqueza da Espanha, sobretudo em tempos de crise.

Fachada e interior da Catedral de Ávila, cuja construção foi iniciada em 1091

Tesouros intramuros

Em Ávila estão monumentos de suma importância para a Espanha, como a Catedral de Ávila, datada do século 12, em estilo românico tardio, com rosáceas e linhas retas e simétricas. Por fora, além das esculturas da porta principal, o que se vê é uma construção que lembra mais uma fortaleza do que um templo, bem no estilo medieval. Dentro, há vários tesouros e relíquias históricas católicas, entre eles as pinturas da Capilla Mayor, a capela mais antiga, que guarda quadros do estilo gótico, e o sepulcro de dom Alonso de Madrigal (1410-1455), teólogo e bispo de Ávila, conhecido como “El Tostado”, por sua pele escura, e obra do artista Vasco de la Zarza, um dos mais importantes do período renascentista na Espanha.

Outro ponto importante é o Monasterio de la Encarnación, um convento das irmãs Carmelitas Descalças, onde viveu Santa Teresa durante três décadas. No interior, aberto à visitação, há um museu dedicado à santa, com utensílios de uso pessoal, livros e escritos que pertenceram a ela e que contam sua trajetória religiosa.

Para quem tem tempo, há mais locais para visitar, como a Plaza del Mercado Chico, a Basílica de São Vicente, palácios, mansões seculares e museus. Sem falar no prazer de caminhar pelas ruas estreitas de pedra, de comer doces e pratos típicos medievais e de conversar com a gente de Ávila, cheia de histórias para contar.