04/11/2025 - 17:13
Dez anos depois da destruição de vilarejos pelos rejeitos das mineradoras Samarco, Vale e BHP, moradores tentam se adaptar a nova vida e dizem que espírito unia a comunidade se perdeu.Dispersas pelos morros, as casas recém-acabadas se destacam na paisagem ainda dominada por vegetação. Elas formam o bairro mais novo de Mariana, em Minas Gerais, feito para abrigar quem perdeu tudo para os rejeitos da mineração produzidos por Samarco, Vale e BHP Billiton em 5 de novembro de 2015.
Foram quase dez anos de espera para Alexandra Sales. No novo endereço, uma casa de esquina, não há lembranças do antigo lar, que ficava em Paracatu de Baixo. Tudo foi soterrado pela lama após o rompimento da barragem de Fundão.
“O processo demorou muito. Eu gostava muito da minha casa, preferiria o antes. Mas isso não posso ter. Agora é se adaptar a esta nova vida, a este novo lugar, que é bem diferente do que a gente tinha”, conta Sales.
A disposição das construções no novo Paracatu é quase a mesma do antigo povoado. A mãe de Sales está na casa ao lado, a escola fica na praça à frente, num prédio mais moderno, com laboratórios, mas só oito alunos frequentam as aulas por enquanto.
A unidade em Paracatu de Baixo era cheia de estudantes. As ruínas no antigo distrito ainda estão à mostra, com banheiros e salas marcados por rejeitos. As mesas, cadeiras e livros estão revirados, cercados por mato alto, gado solto e carrapatos.
No novo Paracatu, as hortas nos fundos dos terrenos, o vai e vem dos moradores e o senso de comunidade desapareceram. A longa batalha por reparação e pagamentos indenizatórios trouxeram também uma rivalidade velada. “Eu gostava da vida saudável que a gente tinha. A comunidade era mais unida, tinha a parte humana de um ajudar o outro. A vida era simples, mas gostosa”, detalha Sales.
Ela estava grávida quando a onda de rejeitos varreu a região e passaria os dias restantes da gestação num quarto de hotel provisório, vivendo de doações. Salles ainda se lembra do barulho e cheiro de enxofre quando o tsunami passou por Paracatu de Baixo, já na escuridão daquela quinta-feira. Era o som de 44,5 milhões de metros cúbicos de lama, que chegaram pelo rio Doce foram até o Oceano Atlântico, no Espírito Santo. A tragédia deixou 19 mortos e mudou a vida de mais de 1 milhão de pessoas.
Dez anos sem paz
Para as famílias deslocadas após a tragédia, a última década foi de batalha. Luzia Queiroz, da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão, conta que brigou muito para que os direitos fossem respeitados pelas mineradoras ao mesmo tempo em que lidava com o medo de não ter onde morar, de ter perdido tudo depois de uma vida de trabalho.
“Nós brigamos para termos um projeto individualizado para construção das casas. E isso ainda não acabou: agora lidamos com diversos problemas como trincas, pintura que descasca como papel, entupimento e outros”, afirma Queiroz, que acabou de se mudar para o novo Paracatu.
A negociação após a tragédia foi com a Fundação Renova, criada com dinheiro das mineradoras para cuidar da reparação. No fim de 2024, ela foi extinta por efeito do acordo de R$ 100 bilhões firmado entre empresas e diversos órgãos do governo, que passou a gerir os recursos direcionados aos programas de reparação.
Quando precisam resolver alguma pendência sobre o novo lar, os atingidos se dirigem à Samarco. À DW, a mineradora disse que entregou 367 casas nos dois novos bairros e seis estão em construção.
Algumas famílias atingidas preferiram não viver mais no município e escolheram uma residência em outra região. Essas casas também foram pagas pela mineradora. A Samarco não informou quantos seguiram esta opção.
A área que abrigava a antiga barragem, o Vale do Fundão, é monitorada 24 horas por dia. Os rejeitos remanescentes do rompimento estão contidos por estruturas reforçadas, afirma a empresa.
“Não está ruim, mas bom não está”
No novo Bento Rodrigues, algumas casas já passam por pequenos reparos, outras ainda estão em construção. As primeiras moradias foram entregues em 2023. O reassentamento se assemelha a um condomínio de alto padrão moderno, com um visual diferente do antigo povoado, fundado há 300 anos e destruído pelos rejeitos.
Igrejas, praças, posto de saúde, escola e campo de futebol estão à disposição dos moradores, mas praticamente não se vê pessoas transitando pelas ruas pavimentadas sobre os morros. Raimundo Alves, 83 anos, não se sente confiante para caminhar fora de casa. “No antigo Bento era tudo plano, aqui é diferente. As pessoas mudaram muito também, e a gente não conhece mais os vizinhos”, diz sentado numa das cadeiras de sua sala.
É perto da hora do almoço. A esposa de Alves, Geralda Alves, prepara algumas hortaliças na cozinha que vieram do enorme quintal em aclive. Mandioca e alguns legumes não crescem ali, por mais que seu Raimundo, acostumado a plantar, tenha tentado. “Não posso dizer que está ruim, mas bom também não está. Eu tento não pensar muito”, afirma.
Dona Geralda conta que antigos moradores retornam sempre às ruínas de Bento Rodrigues, mas ela não vai por achar tudo muito triste. A imagem da casa onde morava com a família sendo levada pela lama ainda é fresca na cabeça, um acontecimento que quase a paralisou durante a correria de toda a vizinhança para escapar.
No novo Bento, a circulação visível é de homens uniformizados da construção civil, empregados nas obras ainda em andamento. São esses trabalhadores que movimentam o único restaurante do bairro, de portas abertas há dois anos. Darlisa Eusébio serve almoço todos os dias ali, com a ajuda do filho e do irmão.
“Estou contente de voltar a trabalhar. Lá no antigo Bento os moradores eram meus clientes. Aqui nem abro no fim de semana porque não tem movimento”, conta Eusébio enquanto serve um cliente.
“Para lá eu não vou”
Próxima à praça mais central, a casa de dois andares feita para José do Nascimento de Jesus, seu Zezinho, como é conhecido, está em reforma. Ninguém nunca morou lá. Os reparos são feitos a pedido do novo dono, que comprou o imóvel de seu Zezinho e da companheira há poucos meses.
Aos olhos de seu Zezinho, o reassentamento é cheio de defeitos. No celular, ele mostra as trincas, paredes com tinta descascando, critica as técnicas de construção usadas. “Para lá eu não vou”, diz no endereço que tem vivido nos últimos nove anos, decidido a não se mudar para o reassentamento do qual acompanhou de perto toda a construção.
Às vésperas de completar 80 anos, ele mora sozinho num apartamento que decidiu comprar na parte urbana de Mariana. Com um marcapasso no coração, ele ainda toca violão nas missas e festejos religiosos e vende biscoitos pela cidade.
Do antigo Bento Rodrigues a única lembrança material é uma foto ampliada pendurada na parede da sala. A imagem mostra um banco feito por seu Zezinho, que construiu 37 casas do povoado destruído há dez anos.
