31/10/2025 - 11:16
Especialistas advertem que violência cotidiana e confrontos têm impacto negativo duradouro na saúde mental dos moradores de comunidades. Ansiedade e depressão estão entre as consequências de exposição à violência.Ruas sujas de sangue, o cheiro de corpos empilhados e o choro das famílias. Dias depois da megaoperação policial nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, que deixou mais de 120 mortos, não faltam resquícios do horror vivenciado pelos moradores. Na última terça-feira (28/10), helicópteros, blindados e drones tomaram as ruas em uma das operações policiais mais letais da história recente do Brasil.
Aos poucos, a rotina vai sendo retomada. Comércios reabertos, moradores indo trabalhar, crianças indo para a escola. Nas aparências, o cotidiano vai se refazendo. Mas qual é o estado da saúde mental de quem mora nas favelas agora?
“As pessoas tendem a achar que é possível se acostumar com uma rotina de violência. Mas ela vai sendo internalizada e traz efeitos no corpo. A pessoa passa a ter insônia, ansiedade, doenças psicossomáticas, doenças crônicas, quase como uma experiência de guerra, o corpo somatiza”, explica a psicanalista Vera Iaconelli.
“O efeito nas crianças é uma queda brusca no nível de aprendizado, quando comparado com crianças de outros bairros da cidade. A juventude passou a se orgulhar de ser da favela nos últimos anos, mas como resposta ainda sofre episódios como esse. A violência afeta o cotidiano, gera descrença no futuro. O mundo se torna um lugar hostil no qual não se pode confiar”, afirma.
Luto sem reconhecimento
Como se não bastasse o trauma vivenciado por dezenas de famílias, outra camada de violência é a falta de reconhecimento dela, o que dificulta a elaboração do luto.
“Ter um filho morto e não reconhecido pelo Estado como tal. Trabalhando e que leva um tiro nas costas, e a polícia diz que ele é bandido. Dizer que não foi um crime de Estado é adoecedor. Isso torna a violência mais difícil de ser elaborada”, afirma.
Na visão de Iaconelli, todo este contexto é reflexo do que chamou de “apartheid brasileiro”.
“Essas comunidades são predominantemente compostas por pessoas negras. Uma violência dessa gravidade reproduz a experiencia de um apartheid. Isso se repete e vem desde a formação do povo brasileiro”, analisou.
Sofrimento
Com anos de atuação em comunidades conflagradas do Rio, a psicóloga Lurdes Oberg, observa que a rotina de violência leva moradores de comunidades a vivenciar sentimentos de humilhação, tristeza e vergonha, que afetam profundamente a subjetividade.
“O sujeito se responsabiliza por aquela vida, mas a responsabilidade não é dele, é do Estado. Esse tipo de chacina pode acabar com a perspectiva de um jovem.”
Ela afirma que o sofrimento psíquico não pode ser dissociado do sofrimento social, uma vez que a subjetividade não está isolada de um contexto sociopolítico. A principal crítica da psicóloga é a ausência do Estado em políticas públicas.
“O Estado entra nesses momentos, mas deveria estar presente em políticas de ação social, atenção primária, habitação, infraestrutura, cultura, lazer, educação.” Ela cita o relato de uma mãe: “Tem dois momentos muito difíceis: quando o filho deixa de escutar a mãe e quando entra para o tráfico.”
Pesquisa mostrou impacto de violência em outro complexo
Entre 2018 e 2020, sete em cada dez moradores do Complexo da Maré, entrevistados em uma pesquisa sobre saúde mental relataram que tinham medo frequente de que uma pessoa querida fosse baleada.
O estudo das ONGs People’s Palace Projects e Redes da Maré sobre saúde mental mostrou ainda que o receio estava relacionado à frequêcia com que esses moradores se viam expostos à violência: 44% relataram que estiveram em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores à entrevista, e 32% passaram por isso mais de uma vez.
Além de presenciar tiroteios, os moradores também contaram com frequência que viram pessoas feridas pela violência. Chegou a 17% a proporção de entrevistados que testemunharam alguém ser baleado ou assassinado no ano anterior à pesquisa, e um quarto dos moradores disse ter presenciado um espancamento ou agressão física.
Os pesquisadores avaliaram que essas experiências produziam traumas, afetavam a saúde mental e reduziam a confiança dos moradores nas instituições.
A pesquisa mostrou ainda que um terço dos moradores enfrentava impactos da violência em sua saúde mental. Os problemas mais comuns relatados envolviam episódios depressivos (26,6%) e ansiedade (25,5%). Entre as pessoas que estiveram em meio a tiroteios, 12% relataram pensamentos suicidas.
Os efeitos da exposição à violência também se manifestaram frequentemente fisicamente, com relatos de sintomas como dificuldade para dormir (44%), perda de apetite (33%), vontade de vomitar e mal-estar no estômago (28%) e calafrios ou indigestão (21,5%).
(Agência Brasil, ots)
