Presidente dos Estados Unidos ignora decisões judiciais que contestam medidas de seu governo e ameaça com impeachment de juízes. O Estado de direito está em perigo no berço da democracia?”Se um presidente não tem direito de expulsar assassinos e outros criminosos de nosso país, porque um juiz lunático radical de esquerda quer assumir o papel de presidente, então o nosso país está bem encrencado, e destinado a fracassar!”, queixou-se o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reagindo a uma ordem judicialque ele descumpriu recentemente ao deportar imigrantes venezuelanos.

À reclamação, feita via redes sociais em 19 de março, seguiu-se outra mensagem, postada horas depois. Na lógica de Trump, a ordem do juiz James Boasberg, um “encrenqueiro e agitador”, não teria respaldo, já que o magistrado, diferentemente dele, “não ganhou pelo voto popular”.

“Eu ganhei por muitos motivos […], mas o combate à imigração ilegal pode ter sido o motivo principal para essa vitória histórica.” Assim, Trump só estaria fazendo “o que os eleitores queriam que eu fizesse”. Ecoando uma retórica que soa familiar aos brasileiros habituados às ameaças de Jair Bolsonaro aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o nova-iorquino e seus aliados chegaram a defender o impeachment de Boasberg.

Por que Boasberg questionou deportação de imigrantes

Em meados de março, o governo Trump deportou centenas de venezuelanos, alegando serem membros de uma gangue criminosa – acusação questionada por familiares e defensores de alguns dos deportados. Apesar dos protestos do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o grupo foi enviado à prisão de segurança máxima Cecot, em El Salvador.

A ordem de deportação foi justificada com base em uma lei de 1798, que permite expulsar “inimigos estrangeiros”. O juiz federal James Boasberg, de Washington, havia barrado a deportação, argumentando ser preciso analisar se a lei poderia ser aplicada a esse caso. Mas o governo Trump deportou os venezuelanos mesmo assim, alegando que a decisão saiu quando o avião já estava fora do espaço aéreo americano.

Não é a primeira vez que Judiciário questiona Trump

Mas essa não foi a primeira vez que o governo Trump entrou em rota de colisão com o Judiciário. A dissolução da Usaid, agência do governo americano para a cooperação internacional, também foi freada por um juiz federal, assim como a expulsão de pessoas trans das Forças Armadas.

Foi também nos tribunais que três organizações de proteção do clima obtiveram uma decisão para obrigar a Casa Branca a repassar 14 bilhões de dólares em financiamento.

“Temos juízes que saíram do controle, que destroem nosso país”, afirmou Trump à emissora americana Fox News. Mas negou que tivesse intenção de descumprir ordens judiciais: “Não, não se pode fazer isso.”

Deportações ao arrepio da lei?

“No momento, Trump tem sofrido uma derrota atrás da outra nos tribunais”, resume Johannes Timm, pesquisador do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), em Berlim. Principalmente no caso das deportações, a impressão seria de que o republicano está ignorando, ou talvez até mesmo desafiando abertamente decisões judiciais.

Em 14 de março, autoridades americanas deportaram a médica Rasha Alawieh, professora da Brown University, quando ela regressou aos EUA de uma viagem ao Líbano, seu país natal. A deportação foi levada a cabo apesar de uma decisão contrária de um tribunal federal de Boston.

Destino semelhante pode ter o estudante e ativista palestino de nacionalidade síria Mahmoud Khalil, detido em 8 de março por autoridades migratórias por ter participado de protestos pró-palestinos na Universidade de Columbia. Também a deportação de Khalil foi suspensa na Justiça.

Declarações recentes revelam o desprezo que o republicano e seus auxiliares nutrem por essas decisões judiciais. Tom Homan, o “Czar da Fronteira” de Trump, disse à Fox News não se importar com o que os juízes pensam, e que a expulsão de terroristas “deveria ser motivo de celebração neste país”.

Por sua vez, a também republicana procuradora-geral americana, Pam Bondi, classificou a suspensão das ordens de deportação de “desrespeito à autoridade estabelecida do presidente Trump”, alegando que isso colocaria em risco a população e a aplicação da lei.

Separação dos poderes em risco

Johannes Thimm vê sinais de alerta preocupantes, com o sistema de separação de poderes nos EUA em jogo. Ele avalia que o Congresso, hoje de maioria republicana “quase 100% leal a Trump”, praticamente renunciou à sua prerrogativa de controlar a Presidência.

Resta o Judiciário. “E ali o problema é que os tribunais não conseguem impor suas decisões efetivamente, menos ainda contra o governo. Porque eles não têm força policial própria. O sistema inteiro se baseia [na ideia] de respeito dos outros poderes à autoridade dos tribunais”, explica Thimm.

E é justamente esse respeito que está se esfacelando num ritmo assustador, frisa: “O fato de que Trump agora começa a ignorar decisões judiciais ou a se recusar a cumpri-las, pode desencadear uma crise constitucional.”

Thimm lembra que, num Estado de direito, polícias e órgãos de segurança existem para, em primeira linha, assegurar o cumprimento da lei. Mas, pela hierarquia americana, essas instituições estão subordinadas ao presidente. E se recebem ordens contraditórias, qual delas cumprir?

Suprema Corte reage

Talvez esse seja um dos motivos pelo qual o presidente da Suprema Corte americana, John Roberts, reagiu tão duramente ao desejo de Trump de destituir magistrados que o desagradem. “Há mais de dois séculos, estabeleceu-se que um impeachment não é a resposta adequada à discordância quanto a uma decisão judicial. O processo normal de apelação existe para isso [permitir a revisão de decisões em instâncias superiores]”, disse Roberts em comunicado, em 18 de março.

Três dias depois da reprimenda de Roberts, Trump negou responsabilidade pela deportação de venezuelanos, contrariando nota divulgada pela Casa Branca à época. “Não sei quando foi assinado, porque eu não assinei. Outras pessoas trataram do assunto”, esquivou-se, sugerindo que a deportação teria sido responsabilidade de Marco Rubio, seu secretário de Estado. “Rubio fez um excelente trabalho e queria eles [venezuelanos] fora.”

Para Thimm, do SWP, seria um erro “achar que uma Suprema Corte majoritariamente conservadora vai votar a favor de Trump em todos os casos”. Tal avaliação careceria de lastro no passado, e a Justiça tem reforçado sua independência.

O pesquisador classifica como “uma espécie de jogo de poder” o que está acontecendo agora: “Trump está testando os limites. E aí realmente vai depender de se a Suprema Corte vai se colocar ao lado dos tribunais, assim como John Roberts fez agora.”

EUA rumo à autocracia?

Thimm não crê que Trump vá apostar numa confrontação aberta com a Suprema Corte, cuja composição atual ele ajudou a determinar com as nomeações feitas ainda durante seu primeiro mandato na Casa Branca.

“Mas o problema fundamental – que a Suprema Corte não pode impor o cumprimento de suas decisões na base da força – é o mesmo que o de outros tribunais. Teoricamente, Trump também poderia dizer a eles [Suprema Corte]: ‘Não reconheço este ou aquele veredito.'”

Após o imbróglio com a deportação de imigrantes para El Salvador, Thimm não descarta “que Trump simplesmente ignore a Justiça e não cumpra determinadas coisas, e ninguém saiba direito o que fazer ou o que pode ser feito”. “E aí os EUA terão dado um grande passo em direção à dissolução do Estado democrático de direito.”