04/10/2013 - 16:59
As bolsas de valores movimentam diariamente fortunas em ações cotadas pelo desempenho e pela lucratividade do que as companhias produzem. Sem os gritos e o estresse característicos desses mercados, estão surgindo “bolsas de resíduos” para negociar recursos mais palpáveis e menos glamourosos: os desperdícios das indústrias. Elas funcionam como um MercadoLivre de sucata, multiplicando anúncios de venda e compra online.
Novas plataformas na internet estão conectando empresas de todos os tamanhos e setores que oferecem seus desperdícios, as que buscam insumos para seu negócio, transportadoras para levar materiais de uma ponta a outra, recicladoras e cooperativas de catadores que comprem resíduos para desmanche e revenda, além de auditores ambientais para certificar empresas e processos.
O objetivo é transformar o que está sendo dispensado por uns em matéria-prima para outros e afastar do lixo materiais que podem – e devem – ser reaproveitados. Há 312 mil indústrias no Brasil, segundo dados de 2011 do IBGE. Se as bolsas de resíduos pegarem, o ciclo de vida dos recursos extraídos da natureza pode dar mais voltas antes de eles terminarem aterrados.
Depois de 20 anos encalhada no Congresso, a nova Lei Nacional de Resíduos Sólidos foi aprovada em 2010. Em 2014, os 2.906 lixões – depósitos de rejeitos a céu aberto –, distribuídos por 2.810 municípios, não poderão mais existir. Embora as chances de isso acontecer dentro do prazo sejam mínimas, já que seriam necessários US$ 70 bilhões para transformá-los em aterros sanitários, as regras estão mudando e o poder público, as empresas e os cidadãos terão de se adaptar. A partir de 2016, as medidas ficarão mais rígidas: passa a ser crime ambiental enviar materiais recicláveis para aterros sanitários. Com a nova legislação, o mercado dos desperdícios está recebendo o empurrãozinho de que precisava.
Lei da oferta e da procura
Uma das iniciativas mais recentes no mercado é a startup B2Blue, que se define como uma “plataforma online de valorização e comercialização de resíduos sólidos gerados por indústrias, empresas e comércio”. No seu ano de estreia, completado em junho, a empresa contabilizou 5,4 milhões de quilos de resíduos negociados a pouco mais de R$ 6 milhões. Os itens são os mais variados: arame, ripas de madeira, PVC, pneus, sucata automotiva contaminada, borracha, retalho de tecido, vidro, gordura vegetal e bagaço de cana.
As possibilidades são enormes. A casca de ovo – desperdício usual na indústria de alimentos – é um recurso cobiçado por fabricantes de cosméticos. Os retalhos de tecido podem ser empregados na fabricação de baldes, cabides plásticos e para forração de bancos na indústria automobilística. “Poucas empresas estudam essas possibilidades de reaproveitamento. Nós entramos com o know-how, encontrando soluções para os ‘elefantes brancos’ com os quais as empresas precisam lidar”, destaca Mayura Okura, CEO e fundadora da B2Blue.
A startup cobra taxas de 3% a 15% pela assessoria e intermediação no processo de compra e venda. Mais de seis mil empresas são usuárias do portal. Embora tenha atuação nacional, a companhia reúne mais empresas da região de São Paulo, onde está localizada. A logística e o custo do transporte dos resíduos são algumas das partes mais onerosas e complexas do processo. Os melhores negócios acabam sendo, na maioria das vezes, impulsionados pela proximidade física entre as empresas.
Seguindo essa lógica, as Bolsas de Resíduos das Federações das Indústrias de cada Estado brasileiro vinham trabalhando desde 2003 de forma independente. Só em 2009 a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) criou a Bolsa Integrada de Resíduos para todos se interligarem, abrindo o leque de oportunidades. Oito Estados aderiram a essa ideia. Minas Gerais, Paraná e Bahia são os mais ativos no bolsão. “Por exemplo, em Minas, estamos defasados no setor de reciclagem de vidro. Por meio da rede integrada, as empresas mineiras podem encontrar compradores em outros lugares”, aponta Guilherme Zanforlin, analista ambiental da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg).
A Rede Resíduo, por sua vez, aposta numa abordagem diferenciada. A empresa assina contrato com uma geradora de desperdícios em alta escala, para a qual disponibiliza seu sistema de bolsa próprio. Ela paga uma mensalidade fixa à Rede, independentemente do volume comercializado, para se manter conectada com potenciais compradores dos seus rejeitos. A geradora publica seus anúncios em um site fechado aos parceiros. O sistema avisa automaticamente a todos, e os interessados no material anunciado fazem suas ofertas. Os negócios podem ser fechados online mesmo, por meio da ferramenta.
“O sistema de comercialização online está pronto para ser usado por qualquer cliente. O que demora é a mudança cultural nas empresas. Leva tempo para pensar o resíduo como gerador de renda”, comenta Isac Wajc, fundador e sócio da Rede Resíduo. Na hidrelétrica de Jirau (RO), da construtora Camargo Correa – uma das quatro grandes clientes da plataforma –, os trabalhadores incorporaram a nova mentalidade e quase dobraram os rendimentos com resíduos dos canteiros de obras. A receita com a sucata metálica passou de R$ 900 mil para R$ 1,6 milhão em questão de um ano. Ações como essa podem reverter a fama da construção civil de maior gerador de lixo da economia.
Para Francisco Luiz Biazini Filho, também fundador e sócio da Rede Resíduo, o interesse em prolongar a vida dos recursos naturais é muito maior agora, não só no setor de construção. “Nos anos 1990, era um modismo; hoje, existe conscientização. Muitas empresas já têm uma divisão que cuida de meio ambiente e sabem da obrigatoriedade de se adequar”, diz. Além de comercializar a ferramenta tecnológica, a Rede é responsável por sugerir parceiros e homologar aqueles que cumprirem requisitos como licença ambiental, certificações ISO ou internacional, conforme o gosto do freguês.
Comprovar a idoneidade dos compradores é o papel de todas as operadoras de bolsas de resíduos, principalmente quando os desperdícios não seguem diretamente para outra indústria. Nesses casos, que envolvem transportadoras, recicladoras e cooperativas, a operadora da bolsa precisa se assegurar de que elas possuem licenças e certificações para desempenhar as atividades prometidas. Isso porque, com a nova lei, passa a valer a responsabilidade compartilhada de toda a cadeia.
Do outro lado do balcão
A promessa de transformar em lucro o que era lixo é tentadora, mas nem sempre se torna realidade. Bons negócios dependem de alta escala e demanda. De qualquer forma, as bolsas se apresentam como solução para, no mínimo, reduzir custos com a destinação correta dos resíduos ou, pelo menos, evitar multas ambientais. “Os ganhos com as vendas nem sempre são suficientes para cobrir os gastos com a destinação ambientalmente correta”, admite Flávio Nicolau, da gestora de resíduos eletrônicos EcoBrasil, de Varginha (MG).
Os plásticos utilizados nos computadores, por exemplo, só têm bom valor no mercado quando são puros – as misturas e as pinturas antichamas desvalorizam o ‘produto’. As placas eletrônicas são as mais bem cotadas, por possuírem metais nobres. “Quanto maior o nível de precisão do desmanche dos equipamentos eletrônicos, mais caro o processo. Por isso, aterrar costuma sair mais barato do que qualquer outra opção”, explica Nicolau.
A política da EcoBrasil é não deixar que os envios a aterros passem dos 10% do volume coletado com o cliente. Mas é o cliente que decide a destinação, conforme o preço que quer pagar pelo serviço, já descontando o quanto ganhará com a venda dos resíduos. Entre os mecanismos mais baratos usados para evitar os aterros no caso de materiais de pouco valor ou rejeitados no mercado estão: a incineração, que gera energia para a rede elétrica; o coprocessamento, que produz a mistura do cimento; e as usinas de fabricação de asfalto, que aceitam todo tipo de plástico moído.
Na indústria de reciclagem do óleo lubrificante para automóveis, as empresas que fornecem o óleo usado – como concessionárias e oficinas – sempre venderam o material acumulado. Em contrapartida, elas precisam dar destinação correta a itens contaminados de óleo. Aí é a vez de os coletores cobrarem por serviços de gestão de resíduos sólidos. Os envases plásticos seguem para a reciclagem e o metal dos filtros de carro é redirecionado para a indústria. Já os resíduos (areia, pano, etc.) são vendidos para a destruição térmica ou o coprocessamento.
Nem todos oferecem esses serviços, mas os que apostam no comércio de reciclados, como a Lubrificantes Fenix, de Paulínia (SP), levam vantagem. “Tentamos fidelizar o cliente para não ter custo para ninguém. Esse é nosso diferencial de negócio”, explica Rodrigo Domene, gestor industrial da Fenix.
O rerrefino do óleo lubrificante para automóveis é inesgotável, porque o material nunca perde suas características. Mas a indústria somente passou a investir de fato no seu reaproveitamento após a resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), em 1993, que tornou obrigatório o recolhimento desse tipo de óleo. Atualmente, de cerca de um bilhão de litros de lubrificante gerados anualmente no Brasil, 36% são reaproveitados, e a intenção é aumentar esse índice para 42% até o fim deste ano. O óleo usado é altamente poluidor.
De acordo com Albino Rodrigues Alvarez, coordenador de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), incentivos do governo – como desoneração dos produtos fabricados com material reciclado e linhas de crédito para recicladoras e cooperativas – teriam melhor efeito do que multas ambientais para estimular o mercado de resíduos. Já existem projetos de lei nesse sentido. O PL4611/2012, por exemplo, sugere a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para artigos sustentáveis.
No fim das contas, todos ganham evitando que os recursos se tornem lixo. A natureza é preservada, os insumos são reutilizados e menos energia é consumida. Colocando tudo na ponta do lápis, o Ipea estima em R$ 8 bilhões, por ano, os benefícios de reciclar 15 mil toneladas apenas em aço, alumínio, celulose, plástico e vidro mandados para aterros e lixões. É muita grana para se jogar fora.