Último ato da carreira de Gal Costa, em 2022, chega às plataformas como disco. DW relembra a musa da MPB em conversa com membros da banda Talismã, que a acompanharam em icônico show de 1979.O último ato da carreira de Gal Costa, sua apresentação no Coala Festival, em 2022, será lançado nas plataformas digitais nesta sexta-feira (17/10). Até o ano que vem, o disco As várias pontas de uma estrela – Ao vivo no Coala vai ganhar versões físicas em CD e LP.

No mês passado, o single A história de Lilly Braun já havia chegado às plataformas. “E voltou no derradeiro show com dez poemas e um buquê / Eu disse adeus, já vou com os meus numa turnê”, dizem os versos cantados por Gal.

Mas em janeiro de 1979, Gal Costa iniciava um novo ano e uma nova fase nos palcos e na vida. A estreia do show Gal Tropical, no Teatro dos 4, no Rio de Janeiro, foi o começo daquele que seria o maior momento da sua carreira até então.

Com ela na turnê estavam os músicos da banda Talismã, que a acompanhavam desde o ano anterior. “Nome sugerido por mim”, diz o percussionista Sérgio Boré. “Fui eu que lancei e Boré que chutou. O lançamento é meu”, brinca o baterista Charles Chalegre sobre a origem do nome da banda.

Ao lado deles estavam também Perna Fróes (piano e direção musical) e Moacyr Albuquerque (baixo) — amigos e parceiros musicais de Gal desde os primórdios em Salvador —, além de Juarez Araújo (sopro), Tangerina (ritmo), Zizinho (ritmo) e Perinho Santana (guitarra e violão), que se revezou na banda com Robertinho do Recife.

“Nos queríamos bem e nos tornamos uma família de várias maneiras, todas elas com respeito e cuidado mútuo”, diz Sérgio Boré.

Sucesso de público e crítica, o show Gal Tropical ficou em cartaz até 1981, virou um disco que vendeu mais de 1 milhão de cópias, rendeu uma turnê que foi até ao Japão e marcou a memória de quem viveu tudo aquilo de perto.

Meu nome é Gal Tropical

“Hoje falei com Caetano no telefone e disse para ele que estava cantando Força Estranha. É o momento que mais gosto do show. Quer dizer, gosto de todos os momentos, mas quando canto essa música, sinto que o show inteiro está sintetizado, ou melhor, cabe naquele momento, sabe? É essa coisa do artista, do tempo, da criação, né? Eu fico muito emocionada nessa hora”, disse Gal Costa à jornalista Scarlet Moon, em fevereiro de 1979.

Escolhido por Gal e seu empresário Guilherme Araújo, o repertório do show Gal Tropical incluía músicas do Água Viva, seu LP mais recente. Mas o destaque eram as músicas que ainda seriam gravadas no LP Gal Tropical — todo integrado por novas versões de antigas canções —, como Índia, Força Estranha, Meu nome é Gal e a marchinha Balancê, que faria um grande sucesso no Carnaval de 1980.

“Eu lembro de todos os arranjos do Perna, isso eu lembro. Posso tocar hoje”, diz Chalegre. A convite de Gal, os arranjos das canções do show e do disco foram feitos pelo pianista Perna Fróes, que faleceu em 2023 aos 79 anos.

“Acho que o Perna deu certo porque ele é louco, e com dois loucos juntos só podia dar certo”, disse Gal numa entrevista para o Correio Braziliense em agosto de 1979.

Com ingressos esgotados e o público disputando lugar para conseguir entrar nas próximas sessões, o show em cartaz no Teatro dos 4 logo ganhou grande repercussão e ótimas avaliações na imprensa. Na sequência, no Teatro Casa Grande, também no Rio, ainda houve outra temporada. “No Casa Grande tinha fila de espera para um mês”, conta Boré.

O sucesso levou Gal Costa para as manchetes. Na revista Veja, ela virou capa com o título “A estrela do verão”. O Jornal do Brasil a chamou de “um fênomeno inevitável”. Na televisão, o Fantástico, da Globo, mostrou imagens do show Gal Tropical e destacou o momento importante na carreira da cantora, que alcançara os primeiros lugares nas paradas de sucesso e transformava-se “numa cantora madura, numa grande cantora popular”.

Numa das apresentações no Teatro dos 4, na hora de entrar, Gal caiu e torceu o pé, mas seguiu firme. “Ela fez o show todo, uma guerreira”, relembra Boré.

Plateia teve Pelé, Jimmy Page, Liza Minnelli e outras estrelas

Logo nos primeiros dias do Gal Tropical, o Rei Pelé era figurinha carimbada na plateia do Teatro dos 4. Pelé tentava ser discreto, chegando depois do início do show e saindo antes, mas ouviu uma das raras vaias de sua vida quando as pessoas que estavam do lado de fora o viram entrar sem convite.

Depois de um dos shows, Pelé e Gal esticaram na boate Hippopotamus numa mesa com a mãe da cantora e vários amigos. O affair chegou à imprensa, que especulava sobre o relacionamento dos dois. A revista Manchete estampou numa matéria: “Pelé e Gal: uma história de amor”.

Gal também recebeu visitas de várias outras grandes estrelas no seu camarim do Gal Tropical, como a também cantora Liza Minnelli e as atrizes Candice Bergen, Fernanda Montenegro e Lady Francisco.

Mas numa época em que a rede social era a praia, principalmente no Rio, o jovem guitarrista Victor Biglione ficou sabendo, nas areias cariocas, que estava cotado para substituir Robertinho do Recife na banda Talismã.

“A Gal é minha vida”, declara Biglione. Ele saiu pelas ruas de Copacabana perguntando o endereço de Robertinho, que morava no bairro com a família. Quando encontrou, foi recebido como se já esperassem por ele.

Convidado pelo então guitarrista de Gal para acompanhar o show daquela noite, Biglione esperava na fila quando viu um rosto conhecido na mesma situação. Ele achou que era só impressão, mas depois olhou de novo e teve certeza: era Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin e um de seus ídolos.

“Jimmy Page foi sempre fã da Gal”, diz Biglione. Discreto, Page não foi ao camarim depois do show. Bem diferente do tecladista do Yes, Rick Wakeman.

Quando Biglione tocava com Gal já sem a banda Talismã, Wakeman foi a pessoa que ele viu ficar mais aflita e impressionada com Gal, chegando a ficar preocupado com o estado do tecladista. “Calma, take it easy, brother”, disse Biglione a Wakeman. “Ele estava num estado de transe, de êxtase, aflito para ver a Gal”.

Histórias e shows pelo mundo

Para entrar na banda, o virtuose Biglione ensaiou o repertório em casa, por duas semanas, simulando sozinho até mesmo o dueto de guitarra e voz em Meu nome é Gal. A parte musical foi fácil, o difícil era conter o nervosismo para encontrar Gal pela primeira vez.

“Ela chegou naturalmente, no fiatzinho lindo dela, com um shortinho lindo, balançando a chave do carro. Eu falei: ‘Ih, vai ficar ruim para mim, eu não vou conseguir'”, conta o guitarrista. “Mas deu tudo certo, ela adorou. Ela me deu um beijinho, eu tinha cara de garoto, ela me deu colo, mandou sentar no colo dela, e foi só felicidade.”

Depois do sucesso de Gal Tropical no Brasil, Gal e a banda Talismã iniciaram uma turnê internacional. Em 1980, eles se apresentaram no tradicional Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Também passaram por Argentina, Portugal e Japão.

“Nós viajamos o mundo todo, cara. O mundo todo nos respeitou muito”, diz Charles Chalegre, que Gal chamava de Chachá.

Em terras portenhas, foram recebidos pelo produtor Héctor Aure, que organizou um Brasil x Argentina em sua casa, com a banda Talismã representando o Brasil e Gal Costa posando para a foto com o time.

“Perinho era craque! No [campo de] Chico Buarque ele era o cara”, conta Chalegre. Perinho Santana faleceu em 2012 aos 63 anos.

Na volta, depois de um churrasco e muitas cervejas, o baixista Moacyr Albuquerque, o Momó, não percebeu que estava no carro da produção. “Quando o cara parou na porta do hotel, Momó falou assim: ‘Quanto é a corrida?’ Aí eu falei: ‘Ô, Momó, que corrida, bicho?'”, gargalha Chalegre. Moacyr faleceu em 2000 aos 56 anos.

Em Montreux, com um som de primeira, Gal e banda fizeram uma apresentação irretocável. “As notícias dos jornais de lá eram nesse nível: Gal Costa, bravo!”, diz Sérgio Boré, que guarda os recortes da imprensa estrangeira até hoje.

Os shows costumavam começar com Samba Rasgado, com Gal e o saxofonista Juarez Araújo entrando por último. “Ele tinha a doença do sono. Você podia estar conversando com ele e, de repente, ele dormia”, conta Boré.

No escurinho da coxia, pouco antes de entrar, Juarez podia pegar no sono, mas Gal era seu último alarme. “Gal chegava e chamava: ‘Juju!'”, ri o percussionista. Juarez faleceu em 2003, aos 72 anos.

Na maratona de shows pelo Japão, o público vibrava mesmo sem entender uma palavra do que Gal cantava. “Pegamos um treinamento de terremoto que a gente pensou que fosse o próprio terremoto”, conta Boré.

Convivência e fim da parceria

No último dia 26 de setembro, Gal Costa teria completado 80 anos. “Dia 26 de setembro era sagrado: ela ligava para todo mundo convidando. Chegávamos lá e encontrávamos com Gil, Caetano. Era muito familiar, a gente se queria muito bem”, lembra Boré.

Em 1979, no dia do seu aniversário, Gal recebeu o disco de ouro em casa, quando inaugurou sua piscina com uma pintura no fundo de uma boca inspirada na dela.

“Saíamos, frequentávamos piscinas de hotéis porque a Gal sempre gostou de jogar water polo, então todo mundo brincava com ela. Ela adorava, a gente se reunia. Uma convivência absolutamente espetacular”, revela Biglione.

Os músicos a chamavam de Gaúcha, seu apelido, e iam conhecendo suas particularidades. “Ela sempre gostou muito de carros e cachorros”, conta Biglione.

No final de 1980, de novo com produção de Roberto Menescal e arranjos de Perna Fróes, foi a vez de Gal gravar o disco Aquarela do Brasil, só com composições de Ary Barroso, outro sucesso de vendas.

No dia 30 de abril de 1981, Gal e a banda estavam no Riocentro, no show em homenagem ao Dia do Trabalho, quando uma bomba colocada por militares que planejavam um atentado explodiu no estacionamento.

Testemunha da explosão, o pianista Perna Fróes fez um relato publicado no jornal O Globo. “A [outra] bomba estava montada exatamente onde a gente estava tocando, depois é que desmontaram. Poderia ter voado tudo pelos ares, foi muito forte o lance”, diz Biglione.

Apesar de todo o sucesso da banda Talismã com Gal, o empresário Guilherme Araújo resolveu desfazer abruptamente a parceria, quando os músicos já ensaiavam para o novo show. Em julho de 1981, no Jornal do Brasil, ele foi questionado sobre o porquê de mexer num time que estava ganhando.

“Todo mundo troca. Já fui trocado por Bethânia, por Gil, pelo Ney, o que é que eu posso fazer? […] Os músicos eram uns amores, mas é tão fascinante conhecer gente nova”, disse o empresário.

Segundo Chalegre, a banda não reagiu bem ao fim, mas ele já esperava que o rompimento acontecesse, mesmo com todo o entrosamento musical com Gal. “Quem tinha a cor da Gal era eu, Momó, Perna, Perinho e Boré. Nós criamos a banda Talismã”, avalia o baterista.

Para os músicos da banda, a importância de Gal extrapolou o lado pessoal e profissional.

“O que eu quero falar é da importância sócio-político-cultural da Gal pro Brasil. É um negócio fundamental”, diz Victor Biglione, que Gal chamava de Vitinho.