22/08/2024 - 16:08
Símbolo de pureza e sabedoria ou morte, comparada a lágrimas de deuses: a única gema criada por um ser vivo acompanha a humanidade há séculos, de Cleópatra a Elizabeth 2ª, passando pelo colonialismo.A maior pérola de água doce já encontrada na Escócia, a Abernethy Pearl, foi a leilão na casa Lyon and Turnbull de Edimburgo, nesta quarta-feira (21/08). Superando de longe as estimativas entre 40 mil e 60 mil libras esterlinas, ela foi arrematada por 93.951 libras (R$ 675,5 mil).
Quem a descobriu, em 1967, no rio Tay, foi William Abernethy, famoso como hábil pescador de pérolas até a prática ser abolida no país, em 1998. Também apelidada “Little Willie”, a gema de 11 quilates ou 44 grãos (cerca de 2,2 gramas) é, de fato, rara: ela provavelmente levou 80 anos para desenvolver sua forma perfeitamente esférica, incomum entre as pérolas de água doce. E consta que apenas um em cada 5 mil mexilhões dos rios escoceses contém uma gema.
As pérolas são as únicas gemas criadas por uma criatura viva, formando-se quando uma partícula dura – um grão de areia, por exemplo – irrita o interior de um molusco. Para defender-se, este a envolve em camadas de bicarbonato de cálcio e nácar (ou madrepérola). As de água salgada provêm de ostras; as de água doce, como a Abernethy, de mexilhões.
As pérolas acompanham a história da humanidade há milênios: elas têm adornado os pescoços e orelhas de nobres como as rainhas Elizabeth 1ª e 2ª, ou a princesa Diana; protagonizado mitos como objetos lendários; e representaram um papel duvidoso na cruel colonização europeia do Novo Mundo.
Dada sua origem, associada à luta e resistência, elas costumam ser consideradas símbolos da beleza nascida da adversidade. O pintor Vincent van Gogh – notório por seus conflitos internos e externos – comentou certa vez: “O coração do homem é bem como o mar: tem suas tormentas, suas marés e profundezas – e suas pérolas também.”
Na mitologia, dos gregos aos hindus e chineses
O fato de serem criadas por seres vivos igualmente contribuiu para a mística das pérolas. Em diversas culturas, são símbolo de pureza, sabedoria e divindade, e associadas à Lua e à água, por sua origem líquida. Na mitologia grega, eram consideradas as lágrimas de alegria vertidas pela deusa do amor, Afrodite – ela própria nascida da espuma marinha.
Conhecida como Vênus na mitologia romana, na arte essa divindade é frequentemente representada com pérolas, desde o óleo de 1751 A toalete de Vênus, do francês François Boucher, ao As pérolas de Afrodite, de 1907, pelo neoclássico inglês Herbert James Draper.
Na mitologia hindu, atribui-se a descoberta da primeira pérola ao deus Krishna, que a teria retirado do oceano e presenteado à sua filha, no dia do casamento. Hoje, o objeto continua simbolizando amor, pureza e união no hinduísmo. No Japão, por outro lado, elas trazem azar em casamentos, pois seriam feitas com lágrimas de sereias, que geram sofrimento.
Os chineses associavam as pérolas aos dragões, que nas ilustrações as trazem na boca ou as têm sob sua guarda. A “pérola do dragão” simboliza sabedoria, poder e sorte, representando o equilíbrio harmonioso entre o yin e o yang, as energias feminina e masculina.
Cleópatra e seu coquetel de pérola com vinagre
Até o advento da perlicultura na Ásia, no século 19, tornando-as mais acessíveis, eram raras e portadas principalmente pelas elites, a fim de ostentar sua riqueza e status. A primeira menção a elas de que se tem notícia aparece na biografia do rei chinês Shu, segundo a qual no ano 2206 a.C. o rei Yu teria recebido pérolas como tributo do rio Huai. A mais antiga joia contendo pérolas é o sarcófago de uma princesa persa morta em 520 a.C..
Elas são mencionadas no Velho Testamento, no Talmude e no Alcorão. Na Roma antiga, eram mais valiosas do que diamantes: Júlio César chegou a decretar uma lei só permitindo aos aristocratas portar pérolas no perímetro da cidade. E há, é claro, a história de Cleópatra.
A rainha egípcia teria apostado com seu amante, Marco Antônio, que era capaz de gastar 10 milhões de sestércios (moeda de prata romana) em uma refeição. “Ela tirou um brinco e jogou a pérola numa taça de vinagre, e quando ela havia se dissolvido, engoliu-a”, relata Plínio, o Velho (23-79 da era cristã), em sua História Natural.
A verossimilhança desse “coquetel” tem sido longamente debatida, mas em 2010 um acadêmico da Universidade Estatal Montclair, de Nova Jersey, fez a experiência com vinagre e uma pérola de cinco quilates. A constatação foi que Cleópatra poderia, de fato, ter vencido a aposta, como reza a narrativa do naturalista romano.
Quando a busca da beleza vira exploração e destruição
Como possivelmente ocorre com todos os materiais preciosos, uma parte da história das pérolas é sórdida, envolvendo abuso e exploração. Elas constavam no topo da lista de desejos da Coroa Espanhola, quando Cristóvão Colombo retornou de suas expedições de “descoberta” do Novo Mundo.
O litoral atlântico da Venezuela era rico nas gemas, e os colonizadores da Espanha estabeleceram lá assentamentos de pescadores de pérolas, no começo do século 16, conta Molly A. Warsh no livro American Baroque: Pearls and the nature of the Empire, 1492-1700 (Barroco americano: Pérolas e a natureza do Império), de 2018.
Os habitantes locais eram obrigados pelas tropas coloniais espanholas a mergulhar à cata dos moluscos portadores de riqueza, e “as pisciculturas logo ganharam reputação infame devido a um sistema brutal de pesca de pérolas que lá se desenvolveu, em meio a debates intensos sobre a política de tratamento dos habitantes indígenas das Américas”, relata Warsh.
A Inglaterra do período Tudor (1485-1603) costuma ser denominada “Era das Pérolas”, pelo gosto das classes mais altas por essa forma de ostentar riqueza e status, do qual os retratos datando dessa época são um testemunho eloquente. Nas Américas, o lado sombrio dessa popularidade foi “um extraordinário assalto ao ecossistema da região” e a brutal exploração da população indígena.
Mas, embora não sejam eternas como os diamantes, as pérolas mantêm seu mistério e fascinação ao longo dos milênios. O leilão da Abernethy Pearl é mais um capítulo dessa história de brilho aveludado e misterioso – e por vezes mortal.