Descoberta na Argentina de pintura saqueada na 2° Guerra está ligada à trajetória de dois nazistas que foram para a América do Sul nos anos 1950 – e que fizeram negócios milionários em Mato Grosso e no Rio de Janeiro.Pantanal, 1954. Dois alemães chegam a uma então região isolada, hoje no estado de Mato Grosso do Sul, para inspecionar uma enorme área à venda. Eles têm dinheiro. Muito dinheiro.

A venda é concluída, e logo nascerá na beira do rio Taquari uma fazenda de 83 mil hectares – área equivalente a metade da superfície da cidade de São Paulo – e que passará a contar com 20 mil cabeças de gado. Para tocar a fazenda, os dois alemães criam uma empresa sediada no Rio de Janeiro, com a injeção de centenas de milhões de francos suíços.

Fotografias da época mostram os dois alemães na propriedade. Seus nomes são Friedrich Gustav Kadgien e Ludwig Haupt.

Os dois se conheciam há mais de uma década e esse não seria o único nem o último negócio da dupla no Brasil.

Eles também compartilhavam um passado sombrio: os dois haviam atuado como altos funcionários do aparato econômico da Alemanha nazista, trabalhando diretamente sob as ordens do marechal Hermann Göring, o n° 2 do regime, que notoriamente enriqueceu e montou uma vasta coleção de obras de arte saqueadas de famílias judias.

Kadgien, além de ter sido membro do Partido Nazista, foi oficial da organização paramilitar SS. Segundo historiadores, ele também esteve altamente envolvido no confisco de bens pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Nazistas ricos – e fora do radar das autoridades

Ao contrário de outros nazistas que fugiram para a América do Sul, Kadgien e Haupt não levaram vidas discretas e se inseriram na alta sociedade da Argentina e do Brasil, tornando-se membros de clubes e aparecendo em colunas sociais e reportagens publicadas nos anos 1950 e 1960.

Eles também não mudaram de nome a exemplo de notórios fugitivos, como Adolf Eichmann na Argentina, ou viveram de forma obscura e recorreram a trabalhos discretos, como os carrascos austríacos Franz Stangl e Gustav Wagner, que se esconderam no Brasil.

Kadgien e Haupt chegaram à América do Sul com vistos válidos, carregando fortunas e não fazendo questão de esconder suas identidades. Suas viagens ao Rio de Janeiro, Buenos Aires e outras capitais constavam em listas de chegadas de aviões em jornais, e seus nomes estavam publicamente ligados a várias empresas registradas no Brasil até a década de 1970.

Kadgien e Haupt também não pareciam ter o que temer, especialmente a partir dos anos 1950.

Mesmo atuando na máquina estatal do nazismo, eles nunca encabeçaram listas de procurados. O Centro Simon Wiesenthal, especializado em fugitivos nazistas, nunca elaborou dossiês sobre eles.

Mas, a partir dos anos 2010, décadas depois da morte de ambos, alguns veículos da imprensa alemã e suíça começaram a se debruçar em especial sobre a trajetória de Kadgien e especularam sobre como ele e Haupt conseguiram chegar à América do Sul carregando fortunas.

Isso levantou suspeitas de que eles tenham usado seus antigos cargos e conhecimento para acessar e se apoderar de contas criadas pelo regime nazista em bancos na Suíça, muitas vezes usadas para esconder dinheiro roubado de vítimas do 3° Reich ou de bancos em países ocupados. Segundo escreveu num artigo em 2020 a historiadora suíça Regula Boschsler, esses valores parecem ter sido lavados no Brasil e na Argentina.

Em agosto de 2025, o reaparecimento na Argentina de uma pintura do século 18, tomada durante a guerra da coleção de um judeu holandês, só reforçou a suspeita que os dois alemães tiveram acesso ao butim de guerra do 3° Reich para construir novas vidas na América do Sul. A pintura foi vista por acaso, em uma fotografia que ilustrava o anúncio de venda de uma casa em Mar del Plata. A propriedade está registrada em nome de uma filha de Friedrich Kadgien.

Atuação na máquina econômica nazista

Nascido em 1907 num lar de classe média alta, Kadgien se filiou ao Partido Nazista em 1932, semanas antes de Adolf Hitler assumir o poder na Alemanha. Registros indicam que ele subiu rapidamente nas fileiras do Ministério da Economia sob o novo regime.

Em 1938, passou a trabalhar sob autoridade do marechal Göring, que liderava o chamado Plano Quadrienal, responsável por preparar economicamente a Alemanha para a guerra. Durante o conflito, o departamento de Kadgien lidou com moeda estrangeira, obtenção de combustível, além de mão-de-obra forçada e confisco de bens como diamantes, ouro, títulos ao portador e obras de arte .

Conforme a guerra avançou, o Plano Quadrienal e sua vasta coleção de autarquias começou a depender mais e mais de recursos confiscados em territórios ocupados. Göring, por sua vez, usou seu poder para acumular vastas quantidades de obras de arte.

Já Ludwig Haupt, nascido em 1906 e colega de fuga de Kadgien, era diretor na Kontinentale Öl-Transport AG (Konti Öl), firma responsável pela obtenção de petróleo para a Wehrmacht (Forças Armadas do regime) no exterior. A empresa também fazia negócios com a Suíça, que, cercada pela Alemanha, dependia inteiramente dos nazistas para fornecimento de combustível.

Kadgien e Haupt trabalharam ainda com Ernst Rudolf Fischer, outro alto diretor do Plano Quadrienal próximo de Göring, e que também era membro da SS.

Fuga inicial para a Suíça

Em abril de 1945, poucos dias antes da derrota final da Alemanha, Kadgien, Haupt e Fischer fugiram para a Suíça, com aval de autoridades locais. Eles entraram com três dezenas de valiosos vagões-tanque de combustível da Konti Öl.

O acerto para permitir a entrada do combustível e do trio foi feito com Ernst Imfeld, advogado suíço e diretor na Petrola, autarquia do país alpino responsável por negociar e distribuir combustível.

Enquanto a Alemanha jazia em ruínas, o trio de alemães fez check-in em um elegante hotel em Zurique.

No país intocado pela guerra, Kadgien e Haupt não demorariam a estreitar seus laços com Imfeld, e junto com o advogado fundaram uma empresa chamada Imhauka – nome formado pela junção das iniciais dos sobrenomes do trio (Im)feld-(Hau)pt-(Ka)dgien.

Relatórios de inteligência suíços da época, citados pela historiadora Boschsler em 2020, indicam que Haupt e Kadgien se tornaram especialmente próximos de Antoinette “Tony” Imfeld, esposa de Ernst Imfeld.

A presença do trio de nazistas na Suíça foi logo detectada pelos países aliados. Os três são citados num relatório de inteligência dos EUA em 1946. Os norte-americanos também pressionaram os suíços a deportarem os três de volta à Alemanha, mas, graças à influência de Imfeld no meio político (e possivelmente subornos), eles conseguiram renovar seguidamente seus vistos no país.

De acordo com a historiadora Boschsler, é certo que o trio teve acesso a pelo menos uma conta secreta da Konti Öl num banco suíço no período.

A estada não foi livre de tensão. Autoridades belgas e holandesas foram à Suíça para investigar Kadgien em especial, suspeitando de que ele estava envolvido no roubo de diamantes de joalheiros judeus de Antuérpia e Amsterdã. Investigadores dos EUA também interrogaram Kadgien na Suíça. “Esse sujeito [Kadgien] é uma serpente da pior espécie”, escreveu um oficial norte-americano num relatório.

No final dos anos 1940, Kadgien e Haupt começaram a se movimentar para deixar o país alpino.

Em 2001, uma comissão de historiadores suíços que se debruçou sobre a trajetória do país na 2° Guerra usou o caso de Kadgien, Haupt e Fischer como exemplo da cumplicidade de parte das autoridades suíças com alguns nazistas no pós-guerra. O relatório só continha um erro: dizia que Haupt e Kadgien posteriormente “sumiram sem deixar rastro na América do Sul”.

Vinda para o Brasil

A dupla, no entanto, nunca escondeu seus rastros. Eles reapareceriam no Rio de Janeiro nos início da década de 1950 junto com a suíça “Tony” Imfeld, esposa do advogado Ernst. Todos tinham vistos válidos.

Haupt e “Tony” aparentemente chegaram primeiro à então capital brasileira.

Já a chegada de Kadgien no Brasil parece ter sido antecedida por uma parada na Argentina. Fichas consulares de Kadgien mostram que seus prenomes haviam sido latinizados, passando de Friedrich Gustav para Federico Gustavo Kadgien. Documentos indicam que ele de alguma forma tinha adquirido nacionalidade argentina.

Segundo um documentário da rede alemã WDR produzido em 2015, Kadgien morou inicialmente numa casa no bairro carioca de Santa Teresa, numa rua outrora elegante, mas hoje decadente.

Já Haupt se estabeleceu primeiro em um hotel cinco estrelas e depois num apartamento de frente para o mar em Copacabana, segundo registro de jornais da época e documentos comerciais. Em 1956, Haupt se casou com uma alemã naturalizada brasileira duas décadas mais jovem, de acordo com registro no Diário Oficial.

Fisher, o outro membro do grupo, foi o único que não deixou a Europa. Ele voltou para a Alemanha Ocidental em 1954, e se tornou executivo de um conglomerado químico.

No Rio, Kadgien, Haupt e “Tony” Imfeld, fundaram em 1951 um braço da firma Imhauka, registrado como Imhauka Brasileira Industrial e Comercial S. A., e com endereço na avenida Rio Branco.

Outro braço seria fundado por Kadgien em Buenos Aires em 1951, a Imhauka Argentina S.A., que segue ativo até hoje, segundo registros comerciais.

Três anos após a sua chegada ao Brasil, o trio comprou a imensa propriedade no Pantanal, injetando milhões de francos suíços na operação, e posteriormente formando uma empresa chamada Companhia Agro-Pecuária do Rio Taquary para tocar a fazenda. Mais tarde, compraram outra propriedade organizada sob o nome Companhia Agro-Pecuária de Tuiuiú.

“Tony” Imfeld também aparece em fotografias na fazenda do Taquary, que foram obtidas por jornalistas da rede WDR, que visitaram a propriedade em 2015.

“Aparentemente usaram a empresa agropecuária para lavar o dinheiro espúrio, já que as injeções de capital alcançaram a cifra de milhões”, apontou o historiador argentino Julio B. Mutti, em artigo publicado em agosto no jornal La Prensa. As fazendas acabariam sendo vendidas anos depois pelos alemães.

No Arquivo Nacional, há diversos registros que Ernst Imfeld viajou ao Rio nos anos 1950. A historiadora Regula Bochsler sugere que, além de interesses comerciais, por trás das viagens, também estava a intenção de Ernst de se reconciliar com a esposa. Em 1955, “Tony” decidiu voltar, encerrando a relação comercial e pessoal com Kadgien e Haupt.

Empresários, firmas alemãs e negócios com governos

A Imhauka Brasileira prosperou no Rio nos anos 1950, adquirindo representações de fabricantes de equipamento industrial da Alemanha. Jornais e revistas da década mostram dezenas de anúncios publicitários da firma, anunciando máquinas alemãs, e um vaivém de balanços e atas, ao lado dos nomes de Haupt e Kadgien, que constavam como diretores.

Ainda nos anos 1950, eles se envolveram na formação de outra empresa, a Companhia Brasileira de Caldeiras (CBC), também registrada na avenida Rio Branco, no Rio, e que contou com injeção de capital da baronesa alemã Anita Zichy-Thyssen, filha de Fritz Thyssen, um dos primeiros empresários a financiar o Partido Nazista nos anos 1920, mas que depois caiu em desgraça junto ao regime.

Em 1959, a CBC foi tema de uma reportagem no jornal O Globo, na ocasião de visita do então secretário de Finanças de Minas Gerais, Tancredo Neves, a uma fábrica da empresa em Varginha. Haupt e Kadgien são citados no texto como diretores.

Mas a relação com Anita Thyssen foi tumultuada, como atestam decisões judiciais da época. Advogados de Thyssen acusaram a dupla de manobras contábeis suspeitas – indicando que eles podem ter tentado lavar dinheiro na empresa. No início dos anos 1960 Haupt e Kadgien deixaram a CBC, que foi vendida em 1963 por Thyssen para o grupo japonês Mitsubishi – que ainda a opera.

A tensão comercial na CBC não parece ter atrapalhado a trajetória comercial e social de Kadgien e Haupt. Ainda em 1963, Haupt apareceu em uma fotografia veiculada numa coluna social no antigo Diário Carioca, ao lado do então ministro da Justiça do Brasil, Abelardo Jurema, numa recepção. No ano seguinte, ele compareceu a uma festa na embaixada alemã e participou de torneios de golfe no Rio.

E as duas Imhauka, a brasileira e a argentina, continuaram a fazer negócios. Segundo a emissora WDR, há registro de que Kadgien recebeu uma comissão de 5 milhões de dólares nos anos 1950 por envolvimento na construção de uma represa na Argentina, que contou com apoio do governo da Alemanha Ocidental. Em 1963, o braço brasileiro também ofereceu fuzis da firma alemã Rheinmetall para o Exército brasileiro.

Apesar de concentrar seu tempo em Buenos Aires, Kadgien continuou mantendo endereço no Rio de Janeiro e seguiu ativo na Imhauka Brasileira até 1970. Na argentina, ele comprou nos anos 1950 uma casa em Vicente López, um distrito de Buenos Aires.

Fim da linha para a dupla

Em 1970, porém, as atividades da Imhauka Brasileira desaceleraram. Atas publicadas em jornais mostram uma vai e vem de reorganizações. Em 1971, uma ata apontou que as atividades estavam “temporariamente paralisadas” e que os acionistas haviam concordado em se desfazer de duas sedes da empresa. Sem caixa, foi incorporada por uma empresa credora em 1976.

Um anúncio de condolências publicado em 1973 no Jornal do Brasil indica que Ludwig Haupt morreu no Rio naquele ano. Já Kadgien viveria por mais cinco anos, falecendo em 1978 em Buenos Aires.

No final dos anos 1990, duas décadas depois de sua morte, há uma última menção sobre Kadgien no Jornal do Brasil: ele apareceu numa lista de associados do Jockey Club do Rio que tiveram seus títulos cancelados por inatividade.

Em 2015, foi a vez do documentário da rede WDR revelar que um ramo dos descendentes de Kadgien vivia no Chile. Fotografias na plataforma Flickr mostram que um neto de Friedrich Kadgien atuava nos anos 2010 como vocalista numa banda de metal e havia tatuado o sobrenome da família em letras góticas num dos braços.

Já a viúva de Haupt aparentemente continuou morando em Copacabana nas décadas seguintes à morte do marido. Nos anos 1980, ela foi entrevistada para uma reportagem do jornal O Globo, na qual reclamava da presença crescente de moradores de rua no bairro carioca.

A Imhauka Argentina, por sua vez, seguia ativa em 2025 em Buenos Aires, registrada num escritório no centro da cidade, com centenas de licenças de importação e exportação nos últimos 15 anos.

Passado ressurge junto com pintura desaparecida

Em agosto de 2025, a história de Kadgien ressurgiu na imprensa internacional de forma acidental, graças a um anúncio imobiliário. Jornalistas holandeses notaram que fotografias de um imóvel à venda em Mar del Plata, na Argentina, mostravam uma antiga pintura.

Tudo indicava que se tratava da obra Retrato de uma Dama, do artista italiano Giuseppe Ghislandi. A obra do século 18 consta num banco de dados holandês de obras saqueadas durante a ocupação nazista do país.

A pintura pertenceu originalmente ao negociante de arte judeu Jacques Goudstikker e fazia parte de uma vasta coleção levada para a Alemanha nazista, após ser adquirida por representantes do marechal Göring por uma fração do seu preço numa negociação sob coação. Em 2006, o governo holandês devolveu para uma herdeira de Goudstikker 202 pinturas, mas centenas de outras permanecem desaparecidas ou em poder de museus que resistem em devolvê-las.

Ainda não se sabe quais foram as circunstâncias que levaram Retrato de uma Dama a parar nas mãos da família Kadgien. Após a presença da pintura na residência de Mar del Plata ser revelada, policiais foram ao local em 26 de agosto, mas a obra havia desaparecido novamente. Uma filha de Kadgien, chamada Patricia, de 59 anos, e seu marido foram detidos e, um dia depois, concordaram em entregar a obra. Investigadores devem agora se debruçar em comprovar sua origem.

Em entrevista ao jornal holandês AD nesta semana, a última herdeira de Goudstikker, Marei von Saher, de 81 anos, disse que “nunca pretende desistir” de recuperar toda a propriedade roubada da sua família durante a guerra.