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Uma das coisas mais importantes que aprendi na vida é que nenhum dogma ou conceito, por mais amplamente difundido ou aceito, deve ser encarado sem questionamento. É preciso analisar e pesquisar muito antes de se considerar qualquer princípio como verdadeiro. Foi segundo essa filosofia que formulei minhas próprias concepções religiosas desde bem cedo. Como fui educada num colégio dirigido por membros da Igreja Anglicana, uma linha cristã que supervaloriza o estudo da Bíblia, acostumei-me a lê-la diariamente.

Inicialmente, eu absorvia o que lia de maneira um tanto passiva. Aos poucos, porém, comecei a notar que determinadas passagens suscitavam dúvidas para as quais eu não conseguia encontrar explicações. A partir daí, passei a fazer releituras cada vez mais atentas da obra, na tentativa de esclarecer as contradições e indefinições que ela trazia. Ao longo de anos de pesquisa, acabei estabelecendo uma série de conexões que me permitiram encontrar as respostas que estava procurando.

A origem do primeiro ser humano foi um dos aspectos acerca dos quais realizei profundas investigações. Diz o Gênese 1:27: “E criou Deus o homem à sua imagem; (…) macho e fêmea os criou”. No capítulo seguinte, versículo 7, a criação é pormenorizada: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida e o homem foi feito ser vivente”. Quanto à mulher, “(…) o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma de suas costelas, e serrou a carne em seu lugar. E da costela (…) formou a mulher e trouxe-a a Adão” (vers. 21 e 22).

Mais tarde, por experimentar o fruto da árvore proibida, o casal foi expulso do paraíso, e nasceram Caim e Abel. A população da Terra, composta por quatro pessoas, sofreu seu primeiro déficit quando Caim matou o irmão. Irado com esse crime, Deus expulsou o fratricida do lar. Mas, para que ninguém o ferisse (Gên. 4:15), colocou nele um sinal. Surge aqui, de pronto, uma questão intrigante: quem é que poderia ferir Caim se, como os relatos precedentes sugerem, não existiam outros seres humanos no planeta?

Origem desconhecida

No entanto, eles de fato existiam, já que, depois de muito viajar, Caim chegou à terra de Node, onde, além de construir uma cidade, casou-se e teve um filho, que chamou de Enoque. Este também deve ter encontrado uma esposa, pois, sempre segundo a Bíblia, deixou uma porção de descendentes. Quanto a Adão e Eva, tiveram outro filho, Sete, que se tornou pai de Enos (Gên 4:25, 26). Perguntei a muitos estudiosos de onde teriam vindo os habitantes de Node – que não deveriam ser poucos, uma vez que Caim ajudou a construir uma cidade para abrigá-los – e a mulher que se casou com Sete. Ninguém soube me responder. Como explicar, então,­ a presença na Terra de seres que não haviam sido criados por Deus?

Texto “Uma releitura da Bíblia”, publicado em PLANETA 279 (dezembro de 1995)

Especialistas em etimologia afirmam que o substantivo Adam, longe de se classificar como nome próprio, figuraria, na verdade, entre os diversos termos usados para designar o gênero humano. A palavra só seria empregada como nome próprio em circunstâncias específicas e para indicar certa pessoa ou um ato praticado por ela, como se vê no Gênese: “E tornou Adão a conhecer sua mulher” (4:25) e “Este é o livro das gerações de Adão” (5:1). De acordo com essa teoria, o relato bíblico da criação do homem seria portanto alegórico, e a origem de toda a humanidade estaria simbolizada na origem de um único indivíduo. Nesse caso, as menções posteriores a outros seres humanos não constituiriam qualquer tipo de contradição.

Com respeito à formação do homem a partir do pó da terra, estudando a história do Egito e da Mesopotâmia, descobri que suas tradições religiosas – em diversos aspectos bastante semelhantes entre si – também ensinam que o primeiro ser humano foi feito de barro, numa alusão direta ao elemento­ para o qual retorna depois da morte. A similaridade entre as crenças egípcias e mesopotâmicas e os relatos bíblicos mostra, por sua vez, que os hebreus sofreram clara influência de seus vizinhos, embora somente no aspecto da criação. Isso porque, enquanto todos os povos do Oriente eram politeístas, os hebreus foram os primeiros a instituir o culto ao deus único.

Descendências

Retomando o Gênese, observamos que, após o nascimento de Sete, não há mais citações a Eva, mas apenas aos numerosos descendentes de Adão, cujas idades são listadas. Sete chegou a 912 anos, Enos a 905, Cainã a 910 e Matusalém, a 969 anos (Gên. 5:8 a 27). Em questão de paternidade, todavia, ninguém superou Noé, que ganhou seu primogênito aos 500 anos de idade (Gên. 5:32). Seus outros dois filhos, Cam e Jafé, vieram depois, quando ele estava ainda mais velho.

Até hoje não consegui descobrir se esses patriarcas viveram tanto tempo (o que parece bem pouco provável) ou se nos calendários antigos os anos eram constituídos por um número menor de meses, tendo, assim, duração mais curta que os atuais. Esta última hipótese é, sem dúvida, mais razoável. Não se sabe por que, os descendentes de Adão e Eva se corromperam, e Deus, desgostoso com a violência que imperava, resolveu exterminar a raça humana, fazendo chover durante 40 dias e 40 noites (Gên. 6:12). Só se salvaram do dilúvio universal Noé, sua família e um casal de cada animal existente na Terra.

Pelo que pude apurar, o episódio do dilúvio está respaldado na tradição da Babilônia. De acordo com registros dessa antiga civilização, um dilúvio de grandes proporções teria realmente ocorrido naquela região. Tal fato foi comprovado recentemente por um grupo de arqueólogos que, escavando uma área onde se concentravam cidades babilônicas, encontrou depósitos que poderiam resultar somente de um dilúvio de dimensões gigantescas. O fenômeno, no entanto, teve abrangência local e não, como se subentende no texto do Gênese, universal, cobrindo todo o planeta.

Muitas outras questões instigantes podem ser levantadas a partir da leitura da Bíblia. Até porque os autores do Antigo Testamento pertenciam a diferentes níveis sociais e culturais, o que se refletia na produção de relatos sob óticas também diversas. Seja como for, as narrativas bíblicas constituem um valioso repositório de sabedoria, oferecendo vasto campo para pesquisas a respeito das origens e da evolução da humanidade.