Cinco décadas atrás, o democrata Lyndon Johnson decidiu não concorrer à reeleição. Caos e desunião tomaram o partido, que acabou derrotado. Democratas querem evitar que história se repita na campanha pós-Biden.Um presidente democrata cada vez mais impopular entre seus correligionários decide não disputar a reeleição, abrindo caminho para um substituto. Uma campanha marcada por profunda divisão no país, episódios de violência e um cenário externo repleto de crises. Paralelamente, um velho rival republicano derrotado anos antes retorna para disputar a Presidência mais uma vez.

Não se trata de 2024, mas de 1968. E o presidente desistente não é Joe Biden, mas Lyndon Baines Johnson, conhecido como LBJ, e que ocupou a Casa Branca entre 1963 e 1969.

Até o último domingo (21/07), ele havia sido o último presidente americano no exercício do cargo a abandonar uma nova candidatura.

Agora, LBJ ganhou a companhia de Biden. No caso do atual presidente, a desistência ocorreu a contragosto, na esteira de preocupações crescentes entre membros do seu partido sobre sua capacidade cognitiva aos 81 anos e força para vencer o republicano Donald Trump na eleição presidencial de novembro.

E, neste momento, a memória e lições dos acontecimentos de 1968 parecem nortear os passos dos atuais membros do Partido Democrata nos primeiros dias de campanha pós-Biden.

Abandono sem indicação de sucessor

No início de 1968, LBJ sofria com profundas divisões dentro do seu partido e crescente desaprovação com o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã.

Apesar dos problemas, a expectativa era de que LBJ, com o poder da Presidência, não enfrentasse nenhum outro pretendente viável no seu partido e assegurasse uma nova candidatura. Mas a entrada do senador Eugene McCarthy – um forte crítico da guerra – na disputa interna embaralhou as coisas.

Em março de 1968, McCarthy não ficou longe de derrotar Johnson nas primárias de New Hampshire, um estado pequeno, mas um termômetro eleitoral na pré-campanha. A vitória por pouco humilhou LBJ e ainda levou o senador Robert F. Kennedy (RFK), uma figura que o presidente detestava, a também se lançar na disputa.

LBJ passou então a ter que enfrentar dois rivais. A guerra no sudeste asiático também ia de mal a pior, sabotando suas chances de ganhar a eleição geral em novembro. Segundo uma biógrafa, o presidente então se deu conta da “total impossibilidade da sua situação”.

Em 31 de março, ele surpreendeu o país ao anunciar na televisão: “Não buscarei e não aceitarei a indicação do meu partido para outro mandato como presidente”.

Embora não tenha sido revelado à época, LBJ, segundo confidentes, também estava preocupado com sua saúde – ele acabaria morrendo em 1973, aos 64 anos.

Em seu anúncio, LBJ não endossou nenhum potencial substituto. A escolha natural seria o seu vice, o veterano Hubert Humphrey, mas nenhum arranjo foi formalizado.

Disputas internas no Partido Democrata

A saída de LBJ também acelerou a tendência de fragmentação do partido em quatro facções: uma ainda leal ao governo, formada por sindicalistas e caciques municipais alinhados a Humphrey; outra, antiguerra, liderada por McCarthy e ligada ao movimento estudantil; uma terceira, ligada à família Kennedy, que tinha apoio de negros e latinos; e, finalmente, democratas do sul dos EUA, furiosos com as políticas de integração racial de LBJ.

O vice Hubert Humphrey esperaria quase um mês para se lançar na corrida. A essa altura, já era tarde demais para que ele participasse das primárias, que vinham sendo monopolizadas por McCarthy e RFK.

Mas, à época, as primárias ainda não eram o principal instrumento partidário para a escolha de um candidato. Boa parte da conquista de delegados era feita nos bastidores e a disputa final ocorria na convenção. Foi nisso que Humphrey apostou para tentar assegurar a indicação.

Em junho, a corrida embaralhou novamente quando RFK foi assassinado horas depois de vencer a primária da Califórnia. A morte parecia selar o destino da corrida, já que esperava-se que os delegados de Kennedy fossem apoiar Humphrey. Mas McCarthy ainda pretendia leva a disputa final para a convenção. Paralelamente, o senador George McGovern se lançou como substituto de RFK, tentando segurar os delegados do pré-candidato assassinado.

Convenção caótica

No final de agosto de 1968, os democratas se reuniram em Chicago para decidir quem seria seu candidato. O encontro foi um dos mais tensos da história do partido: o anfitrião, o autoritário prefeito democrata Richard J. Daley, convocara milhares de policiais e soldados da Guarda Nacional para afastar manifestantes antiguerra do anfiteatro que sediou a convenção.

Mas o clima estava tenso entre os próprios democratas, que protagonizaram incontáveis bate-bocas – tudo transmitido pela TV. A segurança também cerceou o trabalho de jornalistas; alguns foram agredidos.

Um senador alinhado a McGovern reclamou do que chamou de “táticas de Gestapo” de Daley, levando o prefeito a gritar insultos antissemitas e ordenar que ele fosse expulso do palco. Do lado de fora, 10 mil manifestantes entraram em confronto com a polícia. Cinegrafistas deixaram os discursos da convenção de lado e passaram a transmitir a pancadaria.

Enquanto isso, Humphrey procurou desesperadamente formar uma plataforma de consenso para aplacar diferentes facções democratas. No final, mesmo com toda a tensão, o vice conseguiu assegurar a indicação. Mas o resultado foi considerado antidemocrático por adversários, que não gostaram de ver o partido conceder a vaga para alguém que não havia disputado uma primária sequer.

O discurso de aceitação de Humphrey também acabaria ofuscado por mais violência do lado de fora. Ao final da convenção, quase 600 manifestantes haviam sido presos e mais de mil pessoas sofreram ferimentos.

Derrota democrata nas urnas

O desgaste da convenção e a reprovação do governo LBJ levaram Humphrey a chegar no pleito presidencial em posição difícil. Com o presidente fora da corrida, o vice se tornou o principal alvo dos manifestantes antiguerra.

Para piorar, a facção dos democratas sulistas que defendiam a continuidade da segregação acabou se alinhando ao racista governador George Wallace, do Alabama, que havia deixado o Partido Democrata em 1967 e lançado uma candidatura independente.

A disputa principal ainda seria com um nome que os democratas conheciam bem: o republicano Richard Nixon, que nos meses anteriores havia protagonizado um retorno triunfal, após passar anos amargurado com a derrota sofrida para os democratas na eleição presidencial de 1960. Nixon assegurou sua indicação sem enfrentar as mesmas divisões, e sua convenção ocorreu sem incidentes.

Na eleição presidencial, em novembro, Humphrey até conseguiu se aproximar de Nixon no voto popular (0,7 ponto a menos), mas ficou bem atrás no Colégio Eleitoral: 191 votos, contra 301 de Nixon. Wallace levaria 46.

No poder, Nixon acabou aprofundando inicialmente o envolvimento dos EUA no Vietnã e chegou até a expandir o conflito para o vizinho Laos – o oposto do que desejavam os manifestantes antiguerra. As últimas tropas dos EUA só deixariam o Vietnã em 1973.

“Queríamos acabar com a guerra e achamos que a melhor maneira de fazer isso seria criar o máximo de problemas para os democratas. Não me orgulho do fato de que possamos ter ajudado a derrotar Humphrey”, avaliou 50 anos depois o historiador Michael Kazin, que participou dos protestos de Chicago, em entrevista à Time.

A vitória de Nixon ainda provocaria um profundo realinhamento de forças nos EUA. Enquanto entre 1932 e 1964 os democratas foram dominantes, vencendo sete de nove eleições presidenciais, as décadas seguintes teriam situação reversa, com os republicanos prevalecendo sobre sete das dez disputas entre 1968 e 2004.

Após a derrota, os democratas também acabariam por reformar o seu sistema interno de indicação presidencial e as primárias se tornariam o instrumento preferencial.

Lições?

A campanha democrata de 2024 não foi livre de tensões. A pressão que se estendeu por semanas para que o idoso Biden desistisse evidenciou fissuras. Mas os democratas logo trataram de virar a página.

No domingo, minutos após anunciar sua desistência, Biden endossou publicamente sua vice, Kamala Harris, como substituta. Não houve silêncio, como ocorreu com LBJ em 1968. E Harris entrou imediatamente no modo campanha, em contraste com Humphrey, recebendo ampla cobertura positiva na imprensa.

O quadro, é claro, não era exatamente igual. LBJ havia abandonado a corrida ainda nas primárias, oito meses antes da eleição. E Biden já havia reunido delegados suficientes e só esperava ver sua chapa ser confirmada na convenção.

Ainda assim, num primeiro momento, analistas especularam se, após a saída de Biden, o partido não organizaria alguma primária-relâmpago.

No entanto, em poucas horas, esse cenário ficou mais distante. Democratas cotados como substitutos na fase em que Biden ainda se agarrava na candidatura se apressaram em anunciar que não tinham interesse em disputar a indicação e endossaram Harris. Por enquanto não há sinal de aparecimento de um RFK ou McCarthy como em 1968.

Também não surgiram questionamentos públicos significativos sobre uma eventual falta de legitimidade de Harris para assumir a candidatura sem o crivo das primárias, tal como havia ocorrido com Humphrey em 1968.

Os apoios a Harris partiram de correntes distintas da legenda, desde veteranos como o casal Clinton e a ex-deputada Nancy Pelosi a membros da esquerda do partido, como as deputadas Alexandria Ocasio-Cortez e Ilhan Omar. O cenário de uma legenda rachada em facções como em 1968 parece afastado – por enquanto.

Mesmo a convenção de agosto – que também será em Chicago – já se desenha como um evento que vai se limitar a referendar Harris. Levantamentos apontam que ela já assegurou apoio suficiente entre os delegados originalmente comprometidos com Biden.

Ainda assim, nem tudo deve ser consenso na convenção em agosto. Grupos pró-palestinos pretendem organizar manifestações paralelas em Chicago para protestar contra o apoio do governo Biden a Israel – e já avisaram que não pretendem rever a convocação após o presidente desistir da eleição.