Debate sobre deportação de criminosos estrangeiros pressiona Berlim e eleva poder de barganha do governo do Afeganistão, que aumenta sua influência sobre rede de consulados na Alemanha.No final de julho, o Talibã anunciou publicamente que só reconhece cinco representações diplomáticas afegãs na Europa como legítimas: as embaixadas na Espanha, Bulgária, República Tcheca e Holanda, além de um consulado em Munique.

Segundo Zabihullah Mujahid, porta-voz do regime em Cabul, essas representações “seguem as diretrizes do Afeganistão”, são dignas de confiança e operam de forma “transparente”. “Elas cumprem seus deveres e executam nossas ordens”, explica Mujahid à DW.

Há um contexto para essa diferenciação. A maioria das representações diplomáticas afegãs na Europa se distanciou do Talibã após os islamistas tomarem o poder em agosto de 2021. Elas não recebem mais fundos de Cabul e não enviam mais relatórios.

Ainda assim, nos últimos três anos o Talibã não fez objeções ao trabalho desses órgãos e autorizou que continuassem a emitir vistos, passaportes e outros documentos para os cerca de 420 mil afegãos que vivem na Alemanha.

Isso mudou no final de julho. Desde então, a embaixada em Berlim e o consulado em Bonn estão praticamente paralisados – ambos se recusam a cooperar com o Talibã. E como Cabul não reconhece mais os documentos emitidos por essas representações, elas perdem sua maior fonte de renda, deixando ainda mais incerto seu status diplomático. A consequência disso é o aumento das receitas no consulado em Munique.

Nem o embaixador em Berlim nem o cônsul em Munique aceitaram conversar com a reportagem.

Alemanha reagiu com “pragmatismo”

Cerca de uma semana depois da decisão do Talibã, o Ministério do Exterior alemão reagiu com um “comunicado formal” endereçado ao “Ministério do Exterior interino” em Cabul. A DW teve acesso ao documento. Nele, a pasta alemã aceita que o consulado em Munique assuma a prestação de serviços para todo o território nacional.

O Ministério do Exterior alemão até agora fala em “conversas técnicas” com o governo afegão de fato.

“Pelo direito internacional, o governo alemão não tem muitas opções”, avalia Winfried Kluth, jurista da Universidade de Halle-Wittenberg. Para ele, o fato de a Alemanha não protestar contra a decisão do Talibã de invalidar outras representações diplomáticas é um sinal de “pragmatismo político”, já que sem a colaboração do regime em Cabul a deportação se torna muito mais complicada.

“O interesse da Alemanha é que ainda exista um consulado onde certas coisas possam ser feitas, como a emissão de vistos ou passaportes para deportações”, explica Kluth.

No ofício enviado a Cabul, o Ministério do Exterior alemão se opõe apenas ao plano do Talibã de que Munique passe a poder atender afegãos não só da Alemanha, mas também de toda a Europa – algo que, segundo a pasta, violaria a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961. A objeção de Berlim, porém, é meramente simbólica, já que ninguém pode controlar se os afegãos que comparecem ao consulado em Munique vêm da Alemanha ou do exterior.

Em tom diplomático, o ofício sinaliza ainda que Berlim está aberta a discutir soluções: “A República Federal da Alemanha está disposta a considerar maneiras de garantir a prestação satisfatória de serviços consulares para os cidadãos afegãos que vivem na Alemanha.”

Diáspora aflita

A nova situação aflige a comunidade afegã. “Muitos dos que vivem na diáspora ainda têm família no Afeganistão”, frisa Patoni Teichmann, ativista social afegã. “Se o Talibã tiver acesso a informações pessoais das embaixadas, poderá pressionar mais facilmente as pessoas.”

Para Alema Alema, ex-ministra adjunta para questões de refugiados e ativista pelos direitos das mulheres, o risco é que o Talibã condicione a aceitação de deportados à obtenção de uma embaixada.

O Talibã pode realmente tentar em breve enviar seus próprios representantes diplomáticos para a Alemanha. Isso pressionaria Berlim justamente no momento em que o governo busca aumentar as deportações para o Afeganistão.

À DW, o Ministério do Exterior alemão assegura que as relações com o Afeganistão não serão “normalizadas” até que o país cumpra obrigações internacionais e, “inclusive e principalmente”, respeite os direitos humanos. “Até agora, essas condições não estão dadas”, afirma a pasta.

“Conversas técnicas” ou passos para a normalização?

O fato de que Berlim mantém “conversas técnicas” com o governo em Cabul tem sido cada vez mais mencionado publicamente.

Desde que a embaixada alemã no Afeganistão foi fechada, após a tomada de poder pelo Talibã em agosto de 2021, a Alemanha deixou de ter um embaixador credenciado no país. Segundo explicado por um porta-voz do Ministério do Exterior em coletiva de imprensa, o diálogo diplomático passou a ser conduzido principalmente através do escritório da pasta em Doha, no Catar, com os representantes do Talibã ali baseados.

Para grandes demandas políticas, como a deportação de criminosos afegãos diretamente de Leipzig para Cabul no final de agosto – a primeira sob o Talibã –, o governo alemão diz não ter recorrido a “conversas técnicas”, e sim à ajuda de países mediadores, como o Catar.

Essa explicação, porém, torna ainda mais surpreendente o fato de o ofício do Ministério do Exterior ao Talibã ter sido enviado em papel timbrado e carimbado pela “Embaixada da República Federal da Alemanha em Cabul”, que aparece como remetente – uma “zona cinzenta” e possivelmente uma “manobra”, na avaliação do jurista Kluth.

Como a embaixada alemã em Cabul segue oficialmente fechada, trata-se de uma situação que “contradiz os fatos jurídicos”, continua Kluth. “É difícil descobrir o que o autor do ofício tinha em mente”, diz.

O Ministério do Exterior alemão não quis comentar o caso.

O fato de estarem ocorrendo conversas técnicas é interpretado pelos Talibãs como “um passo importante em direção ao reconhecimento diplomático”, afirma Thomas Ruttig, especialista em Afeganistão. “O lado alemão tentará minimizar isso, mas, dadas as discussões atuais sobre deportações para o Afeganistão, naturalmente existe um interesse”, avalia.

A comunidade afegã na Alemanha pretende protestar em Berlim contra as novas regras impostas pelo Talibã. A primeira manifestação, que deveria ter ocorrido no início de setembro, não recebeu autorização da polícia. Os ativistas tentarão de novo em uma nova data.