19/07/2023 - 10:07
O uso excessivo de smartphones e das redes sociais está deixando as pessoas mais infelizes, deprimidas e ansiosas, e é hora de a humanidade reavaliar de maneira muito séria seu relacionamento com a tecnologia. É o que afirma Anna Lembke, professora e chefe da clínica especializada em vícios da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
“Quando nos afastamos de nossos telefones, entramos em abstinência. Sentimos ansiedade, irritabilidade, insônia. Então, em algum nível, somos realmente viciados em nossos smartphones”, diz.
Autora de Nação dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar, a pesquisadora americana alerta para os perigos do “ciclo da dopamina”, uma reação natural do corpo que busca rebalancear o excesso antinatural de dopamina injetado por comportamentos ou drogas.
“Quando usamos uma droga que aumenta temporariamente o disparo de dopamina bem acima da linha de partida natural, o nosso cérebro deseja retornar à homeostase, o seu funcionamento normal. Por isso, ele regula a balança novamente, limitando a liberação até um ponto muito baixo, onde sentimos os sintomas de abstinência, como a ansiedade e depressão. Portanto, esse é o estado de dor”, afirma.
Lembke explica que a busca por sair dessa situação dolorosa de abstinência cria uma forma de vício em que o uso se torna responsável apenas por fazer o usuário parar de sentir tal desconforto.
Além disso, tal compulsão tem sido capitalizada por políticos extremistas, afirma ela. “As redes também criaram uma droga muito potente por meio da indignação e de uma espécie de tribalismo, em que as pessoas sinalizam seu pertencimento expressando pontos de vista extremos. É assim que as pessoas se conectam ou sinalizam que pertencem a uma tribo ou outra”, explica.
Levando em conta tudo isso, a pesquisadora defende que governos e a sociedade civil pressionem por mudanças na regulação das tecnologias.
DW Brasil: No livro, a senhora afirma que o excesso da busca pelo prazer está nos deixando infelizes. Por que?
Anna Lembke: Uma das coisas mais incríveis que a ciência descobriu anos atrás é que dor e prazer são processados no mesmo local do cérebro, trabalhando como lados opostos, se equilibrando como se fosse uma balança ou mesmo uma gangorra.
Há uma parte específica do cérebro chamada via de recompensa cerebral. Quando fazemos algo ou consumimos uma substância incrivelmente prazerosa, isso libera dopamina pelo nosso neurotransmissor de recompensa, localizado nessa via, e faz com que nós possamos sentir esse prazer.
Mas, assim que isso acontece, nosso cérebro se adapta a essa grande liberação de dopamina. Ele tenta equilibrar a balança, regulando para baixo a transmissão. E a liberação não volta para a linha de partida natural, mas normalmente para abaixo dessa linha. É aí que experimentamos a dor na forma de sintomas universais de abstinência que são a ansiedade, irritabilidade, insônia, depressão e desejo.
Assim, para cada prazer que sentimos, pagamos um preço fisiológico. Quanto mais intenso o prazer, mais intensa a descida depois.
Então é a liberação de dopamina em excesso que pode causar o aumento da ansiedade e até da depressão?
Estamos sempre liberando dopamina em um nível básico de disparo, como se fosse um batimento cardíaco do cérebro. E não é que estamos ficando viciados em dopamina, é que estamos ficando viciados nesse “ciclo de dopamina”.
Quando usamos uma droga que aumenta temporariamente o disparo de dopamina bem acima da linha de partida natural, o nosso cérebro deseja retornar à homeostase, o seu funcionamento normal. Por isso, ele regula a balança novamente, limitando a liberação até um ponto muito baixo, onde sentimos os sintomas de abstinência, como a ansiedade e depressão. Portanto, esse é o estado de dor.
E quando estamos nesse estado de dor, o desejo de usar a droga novamente para voltar à posição homeostática ou mesmo acima dela é muito, muito forte. A dopamina é o que permeia experiências vividas, intensamente emocionais, e também intensamente memoráveis. Então, estamos ficando viciados nesse ciclo.
E tal vício, essencialmente, está nos levando a um estado crônico de déficit de dopamina. Agora estamos tendo que usar não para obter algo bom, mas apenas para parar de nos sentir mal, sem ansiedade ou os outros sintomas de abstinência.
Então, se você tiver que caminhar dez quilômetros para encontrar água e comida, quando chegar lá, estará com dor, com fome e cansado e, assim, seu equilíbrio estará inclinado para o lado da dor. Mas quando você comer e beber, irá restaurar a homeostase.
Não fomos projetados evolutivamente para usar um intoxicante que nos leve ao lado do prazer de uma só vez. É aí que começamos a ter esse tipo de efeito gangorra.
No livro, a senhora cita o smartphone e as redes sociais como fatores intoxicantes. O brasileiro olha para o aparelho quase cinco horas e meia por dia, enquanto que o alemão passa duas horas e meia, em média. Como esse uso excessivo pode afetar os brasileiros?
Devemos reconhecer que o smartphone, em si, é uma droga. Portanto, o dispositivo em si com suas imagens brilhantes e luzes piscantes, músicas, notificações, entre outras coisas, fazem com que nós realmente nos tornemos apegados aos nossos telefones, da mesma forma que os bebês são apegados às suas chupetas.
Não podemos imaginar estarmos separados do smartphone e, a todo momento, o aparelho está reforçando a liberação de dopamina com todos esses estímulos. Quando nos afastamos de nossos telefones, entramos em abstinência. Sentimos ansiedade, irritabilidade, insônia. Então, em algum nível, somos realmente viciados em nossos smartphones.
E, novamente, sabemos que o que o vício faz ao longo do tempo é mudar o cérebro para promover o tipo de estado crônico de déficit de dopamina, que é semelhante ao transtorno de ansiedade ou depressão clínica. Então, acho que o envolvimento excessivo com esses dispositivos, e com a mídia digital de maneira mais ampla, está nos deixando mais infelizes, mais deprimidos, mais ansiosos, de modo que temos que reavaliar muito seriamente nosso relacionamento com essa tecnologia.
A senhora acredita que políticos extremistas estão se aproveitando desse vício?
Com certeza, isso está muito claro. Parte do apelo da mídia social é ter uma forte reação emocional junto com muitos outros humanos, tendo a mesma reação emocional ao mesmo tempo. Assim, nas redes sociais, também temos um forte impulso à conexão humana com outras pessoas. Então, pertencer a uma tribo também libera ocitocina e dopamina. Então, o que a rede social realiza é, basicamente, uma conexão humana drogada.
As redes também criaram uma droga muito potente por meio da indignação e de uma espécie de tribalismo, em que as pessoas sinalizam seu pertencimento expressando pontos de vista extremos. É assim que as pessoas se conectam ou sinalizam que pertencem a uma tribo ou outra. Uma perspectiva política diferenciada, equilibrada e cuidadosa não vai funcionar.
Como governos e a sociedade civil podem agir para controlar esse vício?
Este não é apenas um problema individual, é um problema coletivo. Isso significa que precisamos de intervenções de baixo para cima e de cima para baixo. O governo sempre tentou proteger as pessoas de produtos perigosos, por isso tenta limitar o acesso a drogas altamente viciantes, como cocaína e heroína, por exemplo. Agora, as redes e os smartphones são produtos de consumo claramente perigosos também.
Acho que as escolas deveriam trabalhar muito mais para criar espaços totalmente livres de tecnologia, atividades e tipos de aprendizado sem tecnologia, ao mesmo tempo em que podem ter outros espaços para integrar telas na internet, por exemplo.
Também acho que as empresas podem fazer muito mais. As corporações também podem mudar as plataformas. Eles podem mudar os algoritmos de inteligência artificial para que as pessoas não sejam direcionadas a avançar para formas mais potentes daquilo que consomem.
Sabemos que quando você dá um número, seja por curtidas, rankings ou outros meios, as pessoas tendem a ficar mais viciadas nele. Portanto, a quantificação é algo que eles podem eliminar, assim como as notificações por push, por exemplo.
No caso das redes sociais, precisamos redefinir o uso para levar a dopamina a um caminho saudável novamente. Na minha experiência clínica, esse caminho representa, em média, cerca de quatro semanas sem uso.
Portanto, em um período menor do que isso, as pessoas experimentarão a abstinência intensa, sem necessariamente chegar ao local onde experimentam os benefícios de não estar em abstinência. E é aí que você realmente quer chegar para perceber como a plataforma de rede social está afetando como nos sentimos, como pensamos, como nos relacionamos com outras pessoas.
Então é isso que eu recomendo. Se você não pode ter quatro semanas sem o uso de dispositivos, faça uma semana. Se você não puder fazer uma semana, faça um período de 24 horas sem olhar ou tocar em nenhuma tela ou dispositivo digital. É muito mais difícil do que parece e, às vezes, até isso é o suficiente para, pelo menos, nos conscientizar de como nos tornamos viciados nesses dispositivos.
A senhora também cita uma possível busca pela dor como forma de combater esse vício. Como isso funciona?
Já sabemos que para todo prazer, nós pagamos um preço. Mas se intencionalmente procuramos a dor e fazemos coisas que são difíceis, isso desencadeia os próprios mecanismos de cura do corpo que, por sua vez, levam à regulação dos neurotransmissores do bem-estar, como a dopamina, serotonina, noradrenalina.
Do tamanho certo, sem ser algo extremo, esta é uma ótima maneira de obter nossa dopamina indiretamente, pagando antecipadamente. Portanto, esta é a ciência da Hormese. Hormesis, em grego, significa “pôr em movimento”.
E o que estamos essencialmente colocando em movimento são os próprios mecanismos reguladores do nosso corpo. Então, essa é a sensação do corredor ou a maneira como as pessoas se sentem após fazer uma imersão em água fria, após a oração ou meditação, por exemplo.
Qualquer coisa que exija um envolvimento de esforço é relativamente difícil enquanto o fazemos, mas nos faz sentir melhor depois. Ocorre o contraste com os intoxicantes, como o celular, que nos dão uma sensação muito boa quando estamos com ele, em que temos dificuldade para parar, e nos sentimos pior depois.