19/01/2022 - 12:10
Ressalvas lançadas por autoridade europeia causam debate. Em meio a dúvidas, especialista da FDA aborda outro aspecto: 3ª, 4ª, 5ª dose é desperdício, enquanto grande parte do planeta tem acesso limitado às vacinas.Aparentemente, uma quarta dose de vacina anti-covid-19 não oferece proteção significativa contra a variante ômicron do novo coronavírus, segundo um estudo preliminar realizado em Israel, o primeiro país a autorizar um segundo reforço vacinal, ou booster, para a população em geral.
Os resultados foram divulgados nesta segunda-feira (17/01), cerca de três semanas após as quartas doses serem disponibilizadas em todo o país. Eles confirmam as reservas expressadas por Marco Cavaleri, diretor para estratégias vacinais da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês): não há dados que indiquem uma eficácia ampla do duplo reforço.
No fim de dezembro, o diretor geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Ghebreyesus, também declarara que políticas de reforço vacinal indiscriminado tenderiam antes a prolongar a pandemia do que a lhe dar fim. No entanto, apesar das reservas dos órgãos reguladores, alguns países, como o Chile, Dinamarca e Hungria, já autorizaram a quarta dose.
Além de frisar a falta de dados sobre a eficácia de doses de reforço múltiplas, Cavaleri mencionou que a inoculação frequente poderia ter impacto negativo sobre a resposta imunológica à covid-19, causando “fadiga na população”.
Exaustão das células T
Pesquisadores rebatem que, assim como não há dados clínicos comprovando a eficácia dos reforços vacinais múltiplos, tampouco há evidências para a hipótese de Cavaleri. Isso, porque jamais se tentou tal pesquisa.
O subdiretor da EMA provavelmente se referia à possibilidade de que a exposição repetida a antígenos, como os das vacinas, possa causar anergia ou “exaustão” das células T, as quais desempenham um papel-chave em combater o vírus Sars-Cov-2 no organismo, explica Sarah Fortune, professora de imunologia e doenças infecciosas, na Harvard T.H. Chan School of Public Health.
Ela reconhece que as ressalvas de Cavaleri têm fundamento científico. No entanto, trata-se antes de uma questão a ser explorada por pesquisadores do que algo que se saiba sobre as vacinas anti-covid e que sirva para definir uma política de saúde, ressalva.
Segundo Fortune, no caso do coronavírus a problemática da exaustão imunológica vai além da simples confrontação repetida com antígenos: “As células T se tornam disfuncionais ao repetidamente 'ver' os antígenos, em certos contextos. Os casos mais bem estudados são situações como HIV/aids ou câncer, em que o antígeno está presente o tempo todo, não apenas na vacinação repetida.”
“Que tal se vacinar a cada dois meses, quatro vezes seguidas?”
Reinhard Obst é professor do Instituto de Imunologia da Universidade Ludwig Maximilian, que promoveu pesquisas sobre a exaustão das células T em camundongos. Ele concorda que a preocupação de Cavaleri faz sentido, apesar da falta de dados clínicos a respeito.
Quando se toma uma vacina, o antígeno está presente por, talvez, duas semanas, depois desaparece. “A ideia de se vacinar a cada quatro meses, ou mais frequentemente ainda, é inédita, algo que não vimos com outros tipos de vírus. E a ideia de exaustão das células T seria o motivo para fazer uma pausa.”
“Se alguém me perguntasse: 'Hei, você quer ser vacinado a cada quatro meses, ou, digamos de dois em dois meses, quatro vezes seguidas?' Bem, eu diria: 'Melhor ter cuidado, deixe [as células T] descansarem.'”
Memória do sistema imunológico precisa de tempo
O professor de pesquisa imunológica da Universidade de Stanford Holden Maecker tampouco conhece literatura científica sobre a possibilidade de doses de reforço múltiplas sobrecarregarem o sistema imunitário. Porém cita dados do Reino Unido mostrando a eficácia de atrasar a segunda dose ou o reforço, por cerca de seis meses.
Numerosos estudos mostraram que o sistema imunológico precisa de tempo para desenvolver sua memória, portanto doses de reforço a intervalos muito curtos não têm grande utilidade, sugere Maecker. Por outro lado, “recebemos vacinas antigripe anuis sem prejuízo, e até agora todas as indicações indicam que reforços ocasionais contra covid-19 podem ser úteis”.
“Exige-se o impossível da vacina anti-covid”
Paul Offit, diretor do Centro de Educação Vacinal e médico assistente para doenças infecciosas do Hospital Pediátrico de Filadélfia, tem se manifestado contra a política de doses de reforço anti-covid para a população em geral, considerando-a equivocada.
Suas ressalvas não se referem a uma eventual exaustão das células T, mas à insustentabilidade de uma estratégia sanitária centrada em tentar prevenir uma enfermidade branda. Segundo ele, o padrão de exigência imposto às vacinas anti-coronavírus é impraticável.
Quando os estudos de fase 3 para os produtos da Moderna e Pfizer foram apresentados nos Estados Unidos, em dezembro de 2020, elas apresentaram uma eficácia de 95%. Mas “isso não tem como durar”, explica o também membro do comitê consultivo da FDA, órgão responsável pela saúde pública nos EUA.
Como os anticorpos neutralizadores se dissipam com o tempo, alguns indivíduos vacinados desenvolverão casos brandos de covid-19. E “tudo bem”, comenta Offit: a vacina está funcionando como deve: “Você só quer que ela o mantenha fora do hospital, fora do tratamento intensivo e fora do necrotério. Mas rotulamos esses casos como 'falhas', o que, acho eu, foi um erro de comunicação. E aí exigimos dessa vacina o que não se exige de nenhuma outra vacina mucosa.”
Os imunizantes típicos contra gripe e rotavírus em geral não protegem contra doenças brandas, mas contra quadros graves, o que, segundo Offit, é seu papel. Embora as autoridades sanitárias americanas tenham autorizado doses de reforço para prevenir a sintomatologia branda, o foco deveria ser administra a primeira e segunda doses para os não vacinados.
“Terceira, quarta, quinta dose é desperdício”
“É uma pandemia global. Vamos sofrer com esse vírus até conseguir controlá-lo em todo o mundo”, prossegue o consultor da FDA. “Enquanto o vírus estiver circulando pelo mundo, vamos precisar ter uma população altamente imune. O melhor meio é garantir aos países com acesso limitado a vacinas o mesmo acesso que nós temos.”
“Acho que uma terceira, quarta, quinta dose é basicamente um desperdício, um desvio do que realmente precisamos, que é assegurar que o povo tenha recebido sua série vacinal primária, porque ela provavelmente as protegerá contra enfermidade grave por um longo tempo, até mesmo por anos”, afirma Offit.
Os Estados Unidos autorizaram as doses de reforço para toda sua população em novembro, apesar da resistência de consultores dos Centros de Controle de Doenças (CDC) e da FDA, como Offit.
“Simplesmente não faz sentido para mim. Não sei como se chegou a isso”, critica o médico do Hospital Pediátrico de Filadélfia. “Quero dizer: quando o presidente [Joe] Biden se levantou em 18 de agosto e disse: 'Vamos ter doses de reforço disponíveis para todo mundo acima dos 16 anos.' Eu simplesmente não sei de onde isso saiu.”
Grupos de risco são diferentes de jovens saudáveis
Os CDC dos EUA afirmam que, embora duas doses de vacina funcionem para prevenir quadros graves na maioria dos pacientes, o reforço pode conferir proteção extra aos grupos de risco, assim como contra a reinfecção por novas variantes do coronavírus, como a ômicron.
Experiências em Israel e nos EUA também indicaram que o reforço ajuda a proteger os pacientes idosos. Offit concorda que a dose extra faz sentido para os portadores de fatores de risco, mas só a proteção contra a ômicron não é razão suficiente para se voltar a inocular toda a população.
“Os hospitalizados, portadores de comorbidades múltiplas, os mais idosos ou os que tomam imunodepressivos: deem a dose de reforço para eles. Sou totalmente a favor. Mas simplesmente não entendo a história dessa luta contra uma moléstia branda em gente jovem e saudável.”