Especialistas debatem questão que deu origem à novela “Vale Tudo”, em 1988, trama de Gilberto Braga que ganha remake. Tema central da obra continua atual.Era para ser um almoço em família como qualquer outro. Mas, lá pelas tantas, Gilberto Braga (1945-2021) quase se engasgou com a comida ao ouvir um comentário do irmão: “Tio Darcy poderia estar rico”, comentou Ronaldo, se referindo ao irmão de sua mãe, Yedda, que trabalhava como delegado na Polícia Federal. “Nunca trouxe uma garrafa de uísque”, queixou-se. Passado o susto, Gilberto resolveu tomar a palavra: “Você acha que alguém não pode ser honesto e ganhar dinheiro?”. Como sua pergunta ficou sem resposta, ele insistiu: “Não vale a pena ser honesto no Brasil?”

A cena acima é descrita na biografia Gilberto Braga – O Balzac da Globo, escrita pelos jornalistas Artur Xexéo (1951-2021) e Maurício Stycer. “Pela primeira vez em sua carreira, Gilberto Braga definiu o tema de uma novela antes mesmo de ter uma história para contar”, explicam os autores no livro. “Uma novela sobre ética, determinada a responder: ‘Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?'”.

No mesmo dia do tal almoço em família, Gilberto Braga começou a escrever a sinopse daquela que seria uma de suas novelas de maior audiência: Vale Tudo. Exibida entre 16 de maio de 1988 e 6 de janeiro de 1989, fez tanto sucesso que, no aniversário de 60 anos da TV Globo, ganha uma nova versão, assinada por Manuela Dias, autora da novela Amor de Mãe e da série Justiça, entre outras produções.

“Não acho, de forma alguma, que o Brasil seja um país onde ‘todo mundo é desonesto’. Pelo contrário. Acho que o brasileiro é majoritariamente honesto e trabalhador”, defende Manuela Dias, que assistiu à versão original quando tinha 11 anos e, ainda hoje, não se esquece de algumas cenas memoráveis, como aquela em que Raquel (interpretada por Regina Duarte) rasga o vestido de noiva da filha, Maria de Fátima (papel de Glória Pires). “Sou do time que acha que vale muito a pena ser honesto, tanto no Brasil quanto em qualquer lugar. Caráter é o que você faz quando não tem ninguém olhando”, diz, citando uma frase atribuída ao filósofo Epicuro.

Salve-se quem puder

Mas Gilberto Braga não foi o primeiro a se questionar: “Vale a pena ser honesto? “. Segundo o economista Eduardo Giannetti, essa pergunta é feita desde Platão, na Grécia Antiga. No segundo livro de A República, o filósofo grego relata a fábula de um camponês que, certo dia, encontra o anel da invisibilidade. “Quem continuaria honesto se pudesse ficar invisível? “, indaga o autor de O Anel de Giges.

“Sócrates, então, tenta mostrar que, sim, vale a pena ser honesto mesmo em uma situação de total impunidade”, afirma Giannetti. No caso de Vale Tudo, o economista pondera que, desde 1989, o caráter do brasileiro não mudou – o que mudou, e muito, foi a situação do país. “A derrocada do Cruzado e a volta da inflação tornavam todos os valores do sistema econômico brasileiro muito arbitrários e imprevisíveis”, explica o economista. “Havia uma insegurança generalizada em relação ao futuro do país. O que predominava era a lei da selva: o salve-se quem puder.”

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Giannetti ressalta que a sociedade brasileira só conseguiu respirar aliviada em 1994 quando foi instituído o Plano Real. Mesmo assim, duas características ainda dificultam nossa adesão às normas de convivência: o individualismo exacerbado, quando se pensa muito em si mesmo e pouco, ou quase nada, no outro, e a miopia temporal, quando se privilegia o agora em detrimento do depois.

“O trânsito brasileiro talvez seja a melhor ilustração do nosso individualismo”, observa Giannetti. “É como dizia aquele antigo comercial de TV: o negócio é levar vantagem em tudo”, recorda, citando o anúncio do cigarro Vila Rica, apresentado pelo ex-jogador Gerson. Já a miopia temporal, explica, é o primado do presente em relação ao futuro. “As pessoas agem muito tendo em vista o imediato. Tudo que requer sacrifício momentâneo para obtenção de benefícios futuros é complicado no Brasil. Isso compromete todo e qualquer planejamento a longo prazo”, adverte.

Faça a coisa certa

A exemplo de Giannetti, o filósofo Clóvis de Barros Filho, a historiadora Mary Del Priore e o antropólogo Roberto Da Matta também são convidados a responder a pergunta que, lá atrás, tanto inquietou Gilberto Braga: “Vale a pena ser honesto no Brasil? “.

Coautor do livro Ética e Vergonha na Cara!, ao lado do educador Mário Sérgio Cortella, Barros Filho responde que sim, vale a pena. E acrescenta: em qualquer tempo e lugar. “Não se trata de compensação. Mas, de fazer a coisa certa”, afirma.

Indagado sobre se ética e honestidade são sinônimos, explica que não. Ética, ensina o “explicador”, como ele gosta de ser chamado, é a arte da convivência. Já a honestidade, entre outros atributos, é uma referência de conduta. Para quem deseja viver em harmonia, ele dá uma dica: seja honesto! “A honestidade está para a ética assim como a aritmética está para a matemática”, compara.

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Mary Del Priore afirma que a desonestidade é uma característica que, há séculos, percorre o Brasil de alto a baixo. “Desde o período colonial, os interesses privados sempre se sobrepuseram aos interesses públicos”, lamenta. “O ditado ‘Mateus, primeiro os meus’ era regra.”

A autora da coleção Histórias da Gente Brasileira afirma que, se tivesse que enumerar alguns trambiqueiros dos períodos colonial, imperial e republicano, a lista seria enorme. Mas, há, também, exemplos de probidade, e o melhor deles é Dom Pedro 2°. “Nunca quis um tostão dos cofres públicos”, enfatiza. “Morreu pobre e no exílio”.

Quanto à pergunta de Gilberto Braga, ela diz que continua atualíssima. E que, em todos os grupos sociais, avançamos pouco desde 1988. “Somos os únicos desonestos? Não. O atual presidente dos Estados Unidos dá o maior exemplo: responde a processos por enriquecimento ilícito, compra de favores, fraude eleitoral… Quer mais?”

“Vale a pena, mas é difícil”

Uma resposta desconcertante é a do antropólogo Roberto Da Matta. “Vale a pena, mas é difícil”, diz. “Ser honesto é tão difícil quanto não mentir. Se você vive em sociedade, é impossível”, acrescenta. Da Matta é autor de uma crônica intitulada História de Pedro Honorato, o Político Honesto.

Filho de mãe rezadeira e pai lavrador, Pedro Honorato, quando garoto, prometeu a Deus ser honesto. E procurou cumprir sua promessa. Adulto, candidatou-se a prefeito. Foi eleito. De cara, demitiu duas funcionárias que não trabalhavam: a sobrinha de um senador e a amante do ex-prefeito. Logo, começou a colecionar desafetos. Um dia, negou um pedido à própria mulher. Foi a gota d’água.

“No fim, o pobre coitado não tinha onde morar. Foi expulso de casa porque não quis nomear o cunhado como secretário. Na rua da amargura, pergunta para si mesmo: o que fiz de errado?”, observa o antropólogo. “Tem um axioma que explica o Brasil: tenho coragem para fazer tudo, menos para negar o pedido de um amigo.”

Que fim levou?

O compositor Nilo Romero e o ator Reginaldo Faria participaram da versão original de Vale Tudo. O primeiro é coautor de Brasil, tema de abertura da novela, ao lado de Cazuza (1958-1990) e George Israel. O segundo deu vida ao empresário Marco Aurélio – aquele que, a bordo de seu jatinho, dá uma “banana” para o telespectador.

Nilo Romero conta que Brasil foi criada por encomenda: não para Vale Tudo, mas para Rádio Pirata (1987), longa de Lael Rodrigues (1951-1989). Na hora de compor a música, ele e Israel misturaram samba e rock. Em seguida, mandaram uma fita cassete para Cazuza. “A versão dele chegou a tocar nas rádios, mas o insucesso do filme fez parecer que sua trajetória como hit terminaria rapidamente”, avalia.

Nisso, Gilberto Braga assistiu ao show de Gal Costa e resolveu usar a versão dela como tema de abertura. “Brasil foi escolhida na sexta-feira anterior à estreia. A música foi gravada no sábado, Gal Costa colocou a voz no domingo e a novela estreou na segunda”, conta Romero.

Quando recebeu o convite do diretor Dennis Carvalho para interpretar o mau-caráter Marco Aurélio, Reginaldo Faria pensou: “Vou apanhar na rua”. Braço direito de Odete Roitman (papel de Beatriz Segall), desviava dinheiro da companhia aérea TCA, onde era diretor, para sua conta bancária. Ao longo da novela, porém, não levou uma “guarda-chuvada” sequer.

“Por incrível que pareça, Marco Aurélio não foi odiado pelo público. Eu era aplaudido por onde andava. O público se identificava com ele e, se pudesse, daria uma ‘banana’ em seu lugar. Não para o Brasil, mas para quem afundou o Brasil”, reflete o ator.

Que fim levou Marco Aurélio? Quem arrisca um palpite é Ana Paula Guimarães, autora do livro O Brasil Mostra Sua Cara – Vale Tudo, A Telenovela Que Escancarou a Elite e a Corrupção Brasileira: “Acho improvável que ele tenha se regenerado. É mais provável que tenha voltado ao Brasil e se candidatado a um cargo público nas próximas eleições. Isso, infelizmente, é muito Brasil!”.