01/03/2012 - 0:00
Mais de 60 milhões de substâncias orgânicas e inorgânicas foram documentadas pelo Registro da Sociedade Americana de Química, o mais completo banco de dados sobre produtos químicos no mundo. Todos os dias, 12 mil produtos químicos ingressam no mercado. Nesse universo em constante expansão, 49 milhões de produtos estão disponíveis comercialmente, mas menos de 1% deles é inventariado ou regulamentado.
O ciclo de vida desses compostos vai além do uso original. Muitos se infiltram no solo, no ar, em rios e no mar. Além disso, pesquisas recentes indicam que elementos químicos não considerados historicamente contaminantes, presentes em produtos farmacêuticos, estão agora alcançando o ambiente. Como resultado, seres humanos e ecossistemas estão sendo continuamente expostos a novos contaminantes. Qual é a dimensão do problema e que tipo de ameaça ele coloca para a saúde e a natureza?
Ao longo do século 20, a indústria química mudou seu foco dos processos químicos pesados para a química orgânica. Esta apoiou-se originariamente no carbono e em outras substâncias produzidas por seres vivos, mas seu alcance, desde então, ampliouse e passou a incluir substâncias sintetizadas artificialmente, como plásticos e drogas. O extraordinário progresso na fabricação de drogas e nos processos industriais eliminou doenças e tornou nossa vida bem mais confortável. Mas também deixou a sociedade dependente de uma tecnologia que envolve uma miríade de compostos químicos, atingindo todos os setores econômicos e a vida cotidiana.
Xampus (extrema esquerda) têm na sua composição produtos tóxicos ao homem. Se essas substâncias chegarem à água usada na agricultura (esquerda), os alimentos cultivados podem se tornar fonte de perigo.
Entre os contaminantes emergentes há vários produtos químicos de uso diário. Eles incluem artigos farmacêuticos e de higiene pessoal, pesticidas, insumos químicos industriais e domésticos, metais, surfatantes (compostos que tornam as substâncias mais solúveis em água ou óleo, presentes, em detergentes, inseticidas e xampus), aditivos e solventes industriais. Muitos desses itens são tóxicos para o homem e os animais aquáticos.
Dentro desses produtos há o grupo de risco dos desreguladores endócrinos, que interferem no sistema hormonal humano e animal. Entre esses estão vários compostos sintéticos usados como ingredientes ativos em produtos farmacêuticos, hormônios naturais como fitoestrógenos (substâncias estrogênicas originárias de plantas) e microestrógenos (originários de fungos). Desreguladores endócrinos figuram em pesticidas, produtos químicos industriais e metais pesados. Aparecem também em medicamentos como os fitoestrógenos usados na proteção contra várias formas de câncer, doenças cardiovasculares e distúrbios cerebrais, bem como contra a osteoporose em mulheres pós-menopáusicas.
Produtos farmacêuticos e de cuidados pessoais, como cosméticos e sabonetes, também preocupam. Várias drogas ministradas a humanos e animais para fins terapêuticos e de diagnóstico têm sido detectadas em águas residuais e em rios, embora em níveis quase imperceptíveis. As mais comumente detectadas incluem analgésicos, cafeína, antibióticos, remédios redutores de colesterol e antidepressivos.
Poluentes orgânicos persistentes têm sido amplamente reconhecidos como uma ameaça à saúde do homem e dos ecossistemas. Eles são usados como pesticidas ou no preparo de produtos industriais como solventes e cloreto de polivinila (PVC), bifenilas policloradas (PCBs) e dioxinas, bem como de dois pesticidas proibidos, clordano e diclorodifeniltricloretano (DDT). Embora os PCBs, o DDT e outros contaminantes tenham sido proibidos, seus resíduos permanecem no ambiente.
Os contaminantes emergentes são encontrados em concentrações variadas em águas residuais tratadas e não tratadas, em efluentes industriais e agrícolas e na água que escoa para rios, lagos e a costa. Os produtos farmacêuticos aparecem com maior destaque no esgoto não tratado, e os desreguladores endócrinos são detectados, sobretudo nas águas de superfície e subterrâneas.
Formas de exposição
As pessoas podem ser expostas a esses contaminantes ao beber água, já que as instalações de tratamento não são projetadas para removê-los. Como as águas residuais também são usadas para irrigar culturas em áreas secas, moradores dessas regiões podem ser atingidos pela agricultura.
Os contaminantes emergentes também podem estar penetrando em nosso corpo, via mariscos e peixes. Como a maioria desses produtos é persistente e solúvel em gordura, provavelmente dura longo tempo no ambiente aquático, acumulandose no tecido adiposo de peixes e animais desses ecossistemas. Substâncias tóxicas persistentes e metais pesados como chumbo têm sido encontrados em frutos do mar e peixes de lagos e áreas costeiras ao redor do mundo, como o Mar Báltico, os Grandes Lagos (entre os EUA e o Canadá) e o litoral do sudeste da Ásia.
Há evidências de que muitos produtos reconhecidos como contaminantes emergentes podem causar tumores cancerígenos, defeitos congênitos e distúrbios do desenvolvimento, além de afetar a fertilidade e a saúde reprodutiva. Acredita-se que os desreguladores endócrinos causam infertilidade e perturbam o desenvolvimento sexual. Há relatos de casos de feminização dos machos e masculinização de fêmeas em humanos e animais.
Observaram-se mudanças nas proporções entre sexos de espécies de perca de rios da Europa. Descobriu-se também que peixes machos a jusante de instalações de tratamento de águas residuais produzem proteína de ovos femininos em rios do Reino Unido. Debate-se ainda se a alta prevalência de doenças e malformações larvais em peixes do nordeste do Atlântico tem relação com a poluição marinha. Estudos buscam determinar se há um nexo causal entre a obesidade humana e a presença de desreguladores endócrinos em peixes e outras fontes de alimento: os hormônios entram no alimento do gado e das aves, por exemplo, para pôr mais carne em seus ossos.
Embora se saiba pouco sobre os efeitos de resíduos farmacêuticos na vida aquática selvagem, uma pesquisa mostrou que analgésicos, drogas antiinflamatórias e agentes reguladores de gordura no sangue encontrados em pílulas anticolesterol podem ser tóxicos para o zooplâncton, o fitoplâncton e os peixes, dado seu prolongado nível de exposição. Suspeita-se que os antidepressivos afetam o desenvolvimento, a desova e o comportamento de alguns crustáceos e moluscos.
Três exemplos de onde encontrar novos contaminantes químicos (a partir da esquerda): esgoto não tratado; anchovas do Mar Báltico; rio poluído por um metal pesado; o cobre.
Impactos não avaliados
Se os efeitos de cada um dos contaminantes emergentes na saúde do homem e dos ecossistemas foram avaliados apenas marginalmente, seus efeitos cumulativos no ambiente aquático e no corpo humano ainda nem sequer foram estudados, pois não são considerados poluentes prioritários. O efeito colateral desse fato é que o monitoramento da água potável e da residual exclui esses contaminantes dos testes, mesmo que a tecnologia para isso exista.
As instalações de tratamento de água não são projetadas para remover contaminantes emergentes.
Pelas razões descritas, a amplitude da exposição humana a produtos farmacêuticos e químicos na água potável não foi avaliada, apesar das preocupações sobre os efeitos de longo prazo da exposição a drogas, sobretudo em fetos, crianças e pessoas com a saúde debilitada. Também preocupa o fato de que a exposição constante a antibióticos pode reduzir a eficácia dessas drogas no combate a bactérias e patógenos, exigindo uma nova geração de antibióticos.
Políticas e regulações são urgentemente necessárias para controlar os elementos químicos que poluem nossa água hoje e prevenir que uma nova geração de remédios os utilize no futuro. Dadas as incertezas científicas quanto aos efeitos na saúde e no ambiente dos contaminantes emergentes, as abordagens baseadas tanto no princípio de precaução quanto em medidas de remediação precisam ser adotadas – embora estas últimas sejam menos eficazes do que as preventivas, em virtude dos altos custos envolvidos na remoção de poluentes após eles terem sido lançados na água.
A situação é mais urgente nos países em desenvolvimento. Assim como a economia baseada em tecnologia e consumo cresce nesses países, expandem- se a fabricação e o uso de produtos químicos. Várias indústrias do Hemisfério Norte, entre elas empresas químicas, mudaram suas operações para o Sul, onde se sabe menos sobre os riscos químicos e as regulações (quando existem) são fracas. Grandes volumes de águas residuais e efluentes industriais com pouco ou nenhum tratamento estão sendo despejados em águas superficiais e zonas costeiras desses países a cada dia.
Um dos principais objetivos do novo projeto da Unesco dedicado ao tema será ajudar os países em desenvolvimento a reforçar seus conhecimentos sobre contaminantes emergentes a partir de um fórum científico de intercâmbio, colaboração e compartilhamento de experiências, por meio de seminários e workshops. Políticas e regulações também têm de ir além do setor da água para enfrentar a fonte da poluição. São necessárias medidas que garantam a produção, o uso e o descarte limpos, seguros e sustentáveis de todos os produtos químicos.
Isso pode significar políticas para reciclar produtos farmacêuticos, investir em agricultura orgânica ou evitar a descarga de substâncias químicas perigosas nos corpos d’água, por exemplo. O uso de substâncias químicas mais preocupantes deve ser severamente restringido,– adotando-se o princípio de substituição por opções mais seguras, quando disponíveis. Paralelamente, autoridades e consumidores devem estar cientes do que podem fazer para usar e dispor de produtos farmacêuticos e químicos com segurança. Ao promover a investigação nessa área, a Unesco espera desenvolver soluções apropriadas no combate a tais poluentes.
* Sarantuyaa Zandaryaa é especialista do Programa de Gestão de Água Urbana e de Qualidade da Água da Unesco.