01/01/2011 - 0:00
O pequeno balneário californiano de Venice só ficou conhecido no resto do mundo quando o roqueiro bardo e poeta Jim Morrison e sua banda The Doors estouraram nas rádios, lá pelo colorido ano de 1966. Morrison e o resto do grupo se conheceram nas redondezas, em supermercados e bares locais. Naquela época, o lugar era decadente, abandonado, quase uma favela: seus habitantes, imigrantes e trabalhadores de várias etnias, moravam por aquelas bandas por não poderem pagar os caros aluguéis da vizinha Los Angeles.
Mas essa nem sempre foi a realidade do local: desde sua fundação, em 1905, por Abbott Kinney, um empreendedor que se tornou milionário com a indústria do tabaco, Venice foi planejada para ser uma, digamos, pré-Disneylândia ou, melhor ainda, uma pré-Las Vegas para ricos e abastados cidadãos. Como Los Angeles não tem mar e praia, Kinney, ao comprar por baixo preço uma área pantanosa e barrenta de oito quilômetros quadrados que ninguém queria, planejou criar um lugar repleto de parques de diversões, teatros, circos, um píer de 300 metros mar adentro e até mesmo um cassino. Fascinado pela cidade italiana de Veneza, teve a ideia de construir uma cópia da original. Para isso, mandou que cavassem canais em toda a extensão do antigo pântano, substituindo o que seria asfalto por água, e especificou que as construções deveriam lembrar o estilo de arquitetura das antigas villas e dos pallazzi venezianos.
Em seu sonho visionário, importou até mesmo gôndolas e gondoleiros italianos, que entoavam “O Sole Mio” a plenos pulmões naquela terra ensolarada. A notícia logo se espalhou pela América: cada fim de semana era um grande acontecimento para turistas de todos os Estados Unidos, endinheirados ou não, que chegavam em massa nos vagões vermelhos da nova Ferrovia do Pacífico (que finalmente ligava o país inteiro), ou para os habitantes de Los Angeles, que percorriam de bonde os 23 quilômetros entre os municípios para ver “as novidades dos tempos modernos”, como corridas de iates, roletas e concertos das big bands. O clarinetista de jazz Benny Goodman começou sua vitoriosa carreira tocando por lá. Havia diversões gratuitas para todos, como aviões fazendo manobras arriscadas sobre o mar ou fogos de artifícios que encantavam até mesmo as famílias dos operários que construíam o “sonho americano”. Fome ou sede não eram motivo para não ver os espetáculos: cachorros-quentes, cervejas e refrigerantes eram vendidos a preços módicos.
Venice foi planejada de início para ser uma espécie de pré-Disneylândia ou pré-Las Vegas destinada a cidadãos abonados. Seu fundador, Abbott Kinney, comprou uma área pantanosa de 8 km2 no litoral para instalar ali parques de diversões, teatros, circos, um píer de 300 metros e até mesmo um cassino
Com uma população de 3 mil habitantes, a cidade recebia nos finais de semana mais de 100 mil visitantes. Era sucesso de público, modismos e vendas. As celebridades da também recém-fundada meca do cinema, Hollywood, compravam mansões na beira da praia só para os finais de semana.
Em Venice, a liberdade, o “não conformismo” e principalmente a arte estão estampados em todos os lugares, seja nos corpos, seja nos pôsteres saudosistas ou nos murais grafitados por artistas anônimos, com apoio das autoridades.
A Veneza americana se expandia – dentro de seus estreitos limites – e ganhava ares e sofisticação de Paris, Biarritz ou Londres. Mas, com o progresso, quase todos os canais que deram nome e fama à cidade foram aterrados em 1929. No lugar deles apareceram ruas pavimentadas.
Era preciso criar pistas para deixar passar os Fords de Bigode (apelido dos Fords Modelo T) que começavam a aparecer nas cidades norte-americanas. Apenas três canais sobraram, para dar testemunho da antiga glória da Veneza Americana.
California Dreamin’
Como já disse o poeta baiano Caetano Veloso, “todo mundo sabe que as cidades foram feitas para ser destruídas”, e assim o sonho urbanístico veneziano de Kinney acabou com a Grande Depressão Americana de 1929. Mais especialmente, a partir de 1932, no rescaldo da crise que viria a atingir severamente a nação e o resto do mundo. Com o fim da Lei Seca, em 1933, que bania e punia o transporte e o consumo de bebidas alcoólicas no território nacional, Veneza se beneficiou e deu uma leve respirada financeira.
Os negócios voltaram a prosperar, os turistas retornaram e uma nova era de esplendor começou. Mas não por muito tempo: em 1941, a entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial acabou por detonar o antigo cenário de luxo e pompa.
Temendo que os japoneses enviassem submarinos para torpedear a Califórnia ou aviões para bombardeá-la do alto, o governo impôs blecaute noturno obrigatório e toque de recolher, o que obrigava estabelecimentos comerciais como lojas, parques de diversões, teatros e boates a operarem somente durante o dia. Isso em pouco tempo levou a maioria deles à falência.
A constante visita de navios de guerra, de transporte militar ou de patrulhamento àquelas praias californianas trouxe, porém, um novo tipo de diversão, digamos, nada familiar ao local. Mensalmente, milhares de marinheiros e soldados, indo ou voltando da guerra no Pacífico, desembarcavam em terra firme atrás de diversão e muita, mas muita ação no mundo do sexo. E tome mão de obra especializada para saciar tantos desejos, sedes, medos e anseios. Como uma pequena metrópole, Venice crescia na mesma proporção com que as telhas e os tijolos das mansões caíam de velhice, descaso e maus-tratos.
Corações beat acelerados
Nos anos pós-guerra, entre o final dos anos 1940 e o começo dos anos 1950, Venice fisicamente só não estava mais destruída do que outras cidades europeias invadidas, bombardeadas ou não. Mas já era famosa por suas atrações, estilo de vida, e pelo (com perdão do clichê) caldeirão multirracial. Imigrantes sobreviventes do holocausto nazista e da guerra na Europa eram os novos inquilinos e a cidade logo se tornou destino e ninho de uma geração de poetas pobretões, beberrões, malditos nas grandes metrópoles do resto do país, mas bem-vistos no balneário. Quase todos filhos e netos dos imigrantes operários poloneses, italianos, judeus e irlandeses que ajudaram a construir a América. E tudo isso com aluguéis baratos! A geração beat finalmente encontrava um lar para chamar de seu.
Nas pistas de skate sinuosas e gigantescas construídas nas praias, diariamente centenas de jovens (e também velhos) exercitam seus variados estilos. Afinal de contas, a prática do skate foi inventada por jovens surfistas locais, no começo da década de 1970. Relógios, calendários e a moda pararam no tempo e no espaço em Venice, tal qual o Super-Homem quando invertia a rotação da Terra para voltar ao passado.
Mas a fundação da Disneylândia, em 1955, em Anaheim – outro município da região de Los Angeles –, acabou com as possibilidades turísticas de Venice. As hordas de turistas mudaram de destino e se dirigiam mais para sudeste, atrás do Mickey, da Cinderela e do Pateta. Como sua famosa homônima italiana, a Veneza americana afundava, não nas escuras águas do Adriático, mas no esquecimento, na miséria e nas drogas.
Curiosamente, foram esses fatores que ajudaram, de certa forma, a mudar a situação econômica do município. Tudo começou durante o governo do republicano Dwight Eisenhower, em meados dos anos 1950, passando pelo democrático porém conservador Lyndon Johnson, para culminar com a repressão estudantil de Richard Nixon em anos de pleno protesto contra a Guerra do Vietnã. Pintores famosos, cineastas cultuados, músicos e escritores começaram a procurar a cidade em busca de uma liberdade ainda que tardia, mas que abrisse as asas sobre suas cabeças, corações e mentes (isso é tão 68!). No final dos anos 1960 Venice passou de beat a hippie, e assim ficou até hoje. Forever hippie! E é aí, nas portas da Era de Aquário, que a história moderna da cidade começa.
Hoje, além de vários eternos doidões de plantão, Venice é lar de personalidades como Julia Roberts, Tim Robbins, Nicholas Cage, Anjelica Huston, Kate Beckinsale, Anna Paquin, Rutger Hauer (Blade Runner), Elijah Wood e Viggo Mortensen. Até Robert Downey Jr. morou por lá nos anos 1990, bem antes de virar Homem de Ferro ou Sherlock Holmes.
Na segunda metade da década de 1950, a cidade, afundada no esquecimento, na miséria e nas drogas, começou a ser procurada por pintores, cineastas, músicos e escritores, artistas que estavam em busca de liberdade. Hoje, Venice é o lar de celebridades como Julia Roberts, Nicolas Cage e Tim Robbins
Venice é uma lançadora de moda e modismos. Por exemplo, o skate, que tão bem conhecemos hoje, foi popularizado lá. Em meados de 1970, alguns moradores jovens e pobres da localidade de Dogtown (“Cidade do Cão”), nos arredores de Venice, tiveram uma ideia para surfar no cimento: colocaram rodas de cerâmica em pequenas pranchas de surfe. Em pouco tempo a modalidade se espalhou entre a juventude e se tornou um dos esportes mais populares (e perigosos) da atualidade. Para iniciados, aconselho um excelente documentário sobre skatismo feito em Venice chamado… Dogtown. Os patins, como os conhecemos hoje, também apareceram por lá e logo se tornaram febre mundial. Até hoje, ainda podemos apreciar no calçadão de Venice, isto é, bem na beira da praia, dezenas de patinadores travolteando ao som de antigos sucessos disco dos anos 1970. Como se o tempo, contradizendo Cazuza, o jovem poeta morto, parasse.
Independentemente do dia, o calçadão (avenida Ocean Front) é sempre uma festa, uma passarela, uma vitrine, um palco, uma galeria, um consultório, um salão de beleza ou de tatuagem e ainda mais um tanto. Sem falar na mulher barbuda e no homem sem ossos do Freak Show, um Museu dos Horrores (ou melhor, aberrações), que destoam do politicamente correto tão em voga nos EUA. Parece que estamos em uma América do começo do século 20, que cobra ingressos para mostrar o que deveria estar oculto.
O austríaco Arnold Schwarzenegger começou sua musculosa carreira ao ser descoberto se exercitando em uma academia gratuita para fisiculturistas, aberta à beira-mar em plena Ocean Front. Carreira que o levou a se tornar Conan, o Bárbaro e o Exterminador do Futuro, antes de ser eleito governador da Califórnia.
Calçada da fama
Entre as inúmeras atrações do calçadão, a principal é Harry Perry, o personagem mais folclórico, mais famoso e mais fotografado de Venice, que, desde 1973, patina pela orla com túnicas brancas, turbante na cabeça e tocando uma guitarra bem caquética na aparência e no som. Ele só se deixa fotografar por quem compra um CD com sua obra musical ou uma camiseta com sua figura estampada. Perry já apareceu em vários filmes hollywoodianos que tem a cidade como cenário. Aliás, Hollywood adora Venice. Semanalmente, sempre tem algum filme ou seriado de televisão sendo rodado por lá. Harry Perry também está representado em um grafite que retrata uma Vênus sensual, d’après Botticelli, saindo de uma concha, mas já com patins e shortinho. São dezenas de murais e grafites que colorem e enfeitam a cidade.
O mais interessante e especial é o mural criado em 1990 pelo pintor Rip Cronk que reproduz – ou melhor, homenageia – o quadro Noite Estrelada, uma das mais famosas obras-primas de Van Gogh, cujo original pertence ao Museu de Arte Moderna de Nova York. O trabalho do artista nos quase dez metros de largura que compõem o mural é excelente e acredito que até o próprio Van Gogh teria ficado emocionado com a homenagem. Aliás, penso que se o genial pintor vivesse nos dias de hoje nessa doida, ácida, doce e libertária Veneza americana, quem sabe não teria uma grande chance de ser feliz e finalmente, em vida, conseguir mostrar e vender suas primorosas pinturas?
Independente do dia da semana, o calçadão de Venice é sempre uma festa, uma passarela, um palco, uma galeria, um consultório, um salão de beleza ou de tatuagem e muito mais
Abaixo, noite estrelada no meio da tarde: a homenagem a um dos mais famosos quadros de Vincent Van Gogh enfeita uma das paredes perto da praia. Na página oposta, o Circo das Aberrações, no alto, ainda atrai turistas e curiosos; abaixo, Harry Perry, o mais famoso personagem do pedaço, rola seu rock’n’roll com patins e turbante de gênio das arábias; mais abaixo, moradora típica da cidade.