01/12/2008 - 0:00
Em Lahore, no Paquistão, o pequeno Ahsan, de 12 anos, conduz sua mãe, Naeema Bibi, de 40 anos, até a porta de casa, para pegar um táxi. Cega, ela depende inteiramente de seus três filhos – dois meninos e uma menina. As crianças a levam para a cidade, alimentam-na e vão com ela ao banheiro.
Naeema não foi cega a vida toda. Três anos atrás, após ser agredida por seu marido repetidas vezes, resolveu se divorciar, já que o homem também não oferecia à família boas condições de vida.
A resposta do marido foi rápida e brutal: jogou ácido sulfúrico no rosto da esposa, o que a desfigurou e deixou cicatrizes horrendas em todo o corpo. Foi assim que ela ficou cega. O cônjuge fugiu e nunca foi preso.
Naeema é apenas mais uma vítima da patologia machista que há séculos grassa no Paquistão. Esse mal é responsável por dezenas de milhares de mulheres estarem sujeitas a abusos, e até mesmo mortes, em nome da “preservação da honra” da família. Pedir divórcio, recusar-se a casar com o homem escolhido pela família ou ser vítima de estupro podem resultar nesse tipo de ação.
Pouco noticiada no Ocidente, essa crise humanitária apresenta números expressivos: entre 70% e 90% das 83 milhões de paquistanesas já foram atacadas ou sofreram outras formas de agressão doméstica pelos maridos, futuros maridos ou membros da família, de acordo com os dados do Human Rights Watch (HRW).
Mais de 4.100 homicídios em nome da honra – assassinatos de mulheres porque os parentes achavam que elas envergonhavam sua família – ocorreram entre 2001 e 2004, segundo o Ministério do Interior do Paquistão. Cerca de 290 mulheres foram mortas e 750 ficaram com ferimentos permanentes ou foram desfiguradas como resultado de ataque com ácido (isso só em 2002), de acordo com o HRW.
Meninas e mulheres entre 14 e 25 anos são as vítimas mais comuns. Os motivos das agressões variam: vingança, obsessão, ciúmes, suspeita de infidelidade, “não-cooperação” sexual e recusa a se submeter à vontade dos homens. Depois de sofrer as agressões, as mulheres são banidas da família e não conseguem arrumar emprego. Outras vezes, elas são confinadas em casa e isoladas socialmente.
“O sexo muitas vezes está baseado no abuso e na violência, e exemplos horríveis são comuns em muitas sociedades que ainda aceitam a discriminação, a exploração e a violência contra as mulheres”, assinala Andrea Bottner, diretor do Escritório Internacional para Assuntos Femininos do Departamento do Estado dos Estados Unidos. “Em muitas partes do mundo, as mulheres ainda não são protegidas pela lei nem têm acesso direto à Justiça. Isso é inaceitável.”
SHAHNAZ BHUKARI, fundadora da Associação para o Progresso das Mulheres (PWA, na sigla em inglês), que oferece ajuda a Naeema e outras mulheres que sofreram abusos, considera essa falta de atenção o resultado de um governo instável. Alguns dizem, no entanto, que a raiz dessa violência é ainda mais profunda e surge dentro da religião islâmica e da cultura paquistanesa. A prática da violência e do assassinato por questões de honra não se limita ao Paquistão. Ela acontece em vários outros países muçulmanos e em outras tradições religiosas e culturais. A HRW constatou inúmeros casos na América, Ásia, Oriente Médio e norte da África.
Stephen Philip Cohen, especialista em Paquistão, Índia e Ásia Setentrional do Instituto Brooking, explica que a maior parte do tratamento que se dá às mulheres tem a ver com a natureza da cultura desses povos. “Uma grande parcela da sociedade paquistanesa ainda é do tipo camponês- patriarcal. Pouco a pouco o país evolui e muda seus padrões socioculturais, mas ainda existe muito chão a ser percorrido”, observa. “O status da mulher no Paquistão varia muito segundo as áreas tribais, os vilarejos e as grandes cidades. O acesso das mulheres à educação e a outras comodidades é muito irregular nas diferentes zonas do país.”
Em algumas regiões paquistanesas, principalmente nas zonas rurais, onde a maioria dos crimes ocorre, as mulheres são consideradas e tratadas como cidadãs de segunda classe. O acesso à educação é limitado e as oportunidades de trabalho são escassas fora das cidades. Afinal, espera-se que as mulheres fiquem em casa para cuidar da família enquanto o homem trabalha.
“A violência contra as mulheres no Paquistão tem cobertura religiosa”, afirma Shahnaz. “Embora nossa religião seja pacífica, oferecendo direitos iguais às mulheres, como ensina o Alcorão, as tradições e costumes da nossa sociedade infelizmente dão a elas pouco espaço.” Além disso, raras leis as protegem.
Há muito tempo as mulheres paquistanesas são discriminadas por preconceitos instalados nos próprios sistemas de Justiça. Exemplo disso são as Ordens de Hudood, um conjunto de leis baseadas numa interpretação muito particular da shariah (direito muçulmano) que foi promulgado em 1979 pelo então presidente Muhammad Zia ul-Haq. Segundo essas leis, mulheres vítimas de estupro podem ser processadas por adultério, caso não haja quatro homens para testemunhar o crime de que foram vítimas. A punição máxima para mulheres acusadas de “crimes” como esse é a morte por apedrejamento.
“Nosso governo instável nunca foi capaz de gerar um sistema judiciário apropriado para as vítimas da violência”, ressalta Shahnaz. “Temos um sistema fraco e, por conta disso, os criminosos que cometem atos de violência contra mulheres saem impunes na maioria das vezes. Isso os estimula a agredi- las ainda mais.”
las ainda mais.” Em 2003, Masarrat Misbah, inspirada pela visita de uma menina ferida em um ataque, decidiu encontrar uma saída para ajudar essas vítimas. Masarrat é dona de uma rede de salões de beleza chamada Depilex e estava trabalhando quando uma garota se aproximou e perguntou se ela podia consertar seu rosto. Masarrat não pôde acreditar no que viu: a face da menina estava totalmente desfigurada por ácido.
Sensibilizada, Masarrat fez parceria com uma organização italiana, a Smileagain, para criar a Depilex Smileagain Foundation. A fundação oferece cirurgias plásticas reconstrutivas feitas por uma equipe de médicos italianos que vão ao Paquistão quatro vezes ao ano para operar as mulheres desfiguradas por ataques com ácido ou queimadas com querosene.
Masarrat não acreditava que tantas mulheres fossem vítimas desse tipo de crime. Logo após o anúncio da abertura da sua fundação, 42 mulheres foram procurá-la, todas desfiguradas por ácido. Hoje, cerca de 240 mulheres e garotas aguardam cirurgia. Em todos os casos, as queimaduras foram propositais.
Uma mulher foi atacada por seu futuro marido depois de se recusar a sair com ele sem a permissão de seus pais. Outra foi queimada pelos parentes do marido, numa tentativa de matá-la para se apossar das terras que pertenciam a ela. Garotas foram queimadas por dar à luz bebês mortos ou por não ter “produzido” meninos. A maioria dos ataques é resultado de um simples “não” dito ao marido ou a algum parente homem.
Masarrat espera reunir dinheiro suficiente para construir um abrigo em Lahore onde as vítimas possam se recuperar e aprender alguma profissão. Atualmente, existem apenas cinco centros de tratamento de queimados em hospitais do país. Muitas mulheres que sobrevivem à queimadura de ácido morrem por conta das infecções. Das vítimas de queimaduras no país, 74% morrem porque os hospitais locais não têm equipamentos adequados para tratá-las. Muitos abrigos para vítimas de outras formas de violência doméstica não permitem a entrada de mulheres com queimaduras por medo de infecção.
Menos de 4% dos homens que cometem esse tipo de crime são julgados e condenados. Os homens geralmente ganham o benefício da dúvida nas cortes paquistanesas e a polícia reluta em interferir nos casos de violência doméstica, vistos como assunto de família
No abrigo improvisado que Masarrat criou no interior de sua casa, em Lahore, as histórias das mulheres e garotas ali recolhidas se repetem. “Se você ama alguém e seus pais dizem ‘não’, você não pode continuar com eles. É como se fosse um pecado você se casar por amor”, declara uma moça que se casou com o homem amado, o qual foi rejeitado pelo pai da noiva por ser de uma classe social mais baixa. Outra adolescente ficou meses trancada num quarto por ter se recusado a casar com o homem que sua família escolhera. Uma terceira foi para o abrigo porque seu marido não quis lhe dar o divórcio e a família dele jurou matá-la se ela se casasse com outro homem.
Essas mulheres procuram abrigo por si mesmas. Algumas chegam com os filhos. Sem recursos para contratar advogados ou outra ajuda legal, muitas permanecem no local por meses e até mesmo anos. Para todas elas, o maior desafio é aprender a confiar nos outros quando deixarem a proteção do abrigo, e como encontrar o otimismo para retornar à vida social num país em que a maioria dos problemas do gênero prossegue sem solução.
O pior, como diz Cohen, é que, “para a elite paquistanesa, essa não é uma questão prioritária”. Ele completa: “As mulheres da alta sociedade não sofrem esse tipo de retaliação. Mas nas aldeias e vilarejos, como fazer para mudar um modo de pensar e agir que tem norteado o comportamento das pessoas há tantos séculos?”