31/05/2025 - 14:31
Empresa responde na Justiça por supostos crimes cometidos entre 1974 e 1986 em uma fazenda na Amazônia apoiada pela ditadura militar. Montadora nega as acusações.Quatro elementos, mesmo isolados, caracterizam trabalho análogo à escravidão: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva. Na Companhia Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia, no Pará, as quatro violações estavam presentes, segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT). A fazenda de criação de gado e extração de madeira da Volkswagen, que teve apoio da ditadura militar, funcionou entre 1974 e 1986.
Em dezembro do ano passado, o MPT entrou com uma ação contra a Volkswagen do Brasil acusando a companhia de crimes cometidos na chamada Fazenda Volkswagen. Além de assumir a responsabilidade pelos crimes, os procuradores pedem que a empresa pague R$ 165 milhões em indenização por danos morais coletivos.
Nesta sexta-feira (30/05), foi realizada uma audiência para ouvir as testemunhas na Justiça do Trabalho em Redenção (PA). A empresa afirmou que investigou as denúncias na época, mas não encontrou irregularidades, de acordo com reportagem da ONG Repórter Brasil, que acompanhou a audiência.
Em nota enviada à DW, a montadora disse acreditar na Justiça. “A Volkswagen do Brasil refuta e rejeita categoricamente todas as alegações apresentadas na ação movida pelo Ministério Público sobre a investigação da Fazenda Vale do Rio Cristalino. A empresa permanece firme na busca por justiça, alicerçada na segurança jurídica e na confiança à imparcialidade do Sistema Jurídico Brasileiro.”
Tráfico de pessoas e servidão por dívida
Não é todo dia que uma empresa multinacional é investigada por trabalho análogo à escravidão, mas também não é algo inédito, afirmou o procurador do MPT Luciano Aragão Santos, coordenador nacional de Combate ao Trabalho Escravo (Conaete).
A montadora de automóveis Build Your Dreams (BYD), por exemplo, foi denunciada nesta terça-feira por ter mantido 220 trabalhadores chineses nestas condições em Camaçari, na Bahia. Em outro caso importante, a Zara Brasil chegou a ser responsabilizada pela Justiça em 2017 por manter trabalho escravo na sua cadeia produtiva.
“O caso da Fazenda Volkswagen, para mim, é inédito porque faz o resgate de uma situação comprovada, que há inúmeros elementos de prova, mas que o Estado brasileiro não buscou responsabilizar os infratores e aqueles que violaram os direitos humanos à época dos fatos”, avaliou o procurador.
A Fazenda Volkswagen tinha 139 mil hectares, quase o tamanho da cidade de São Paulo. A empresa chegou à Amazônia para derrubar a vegetação nativa e criar gado, impulsionada pela política dos governos militares de ocupação e exploração da floresta. Os incentivos que recebeu estariam na casa dos milhões.
Contava com cerca de 300 empregados diretos, como pessoal administrativo, vigilantes, vaqueiros, mantendo uma boa infraestrutura, que incluía áreas de lazer e serviços de saúde. As violações de direitos humanos foram cometidas, segundo a denúncia, principalmente contra centenas de lavradores ou peões, responsáveis por derrubar a floresta para transformá-la em pasto.
Eles eram aliciados em pequenos povoados, sobretudo em Mato Grosso, Goiás e no atual Tocantins por empreiteiros conhecidos como “gatos”. “Esses gatos eram, na verdade, traficantes de pessoas”, explicou o procurador Rafael Garcia Rodrigues, que coordenou as investigações e foi um dos procuradores que apresentou a denúncia.
Na entrada da fazenda havia uma guarita com seguranças armados para controlar a entrada e saída dos trabalhadores. Ao chegarem ao local, as pessoas aliciadas tinham que comprar utensílios em uma cantina, como lona para o barraco onde dormiriam e comida.
“No momento do acerto, o ‘gato’ ou seu cantineiro informavam que os trabalhadores não seriam remunerados porque não haveria saldo a lhes pagar. Ao contrário, os peões é que estariam devendo à fazenda após meses de prestação de serviços”, destacou a denúncia.
Pedro Valdo Pereira Vasconcelos, de 60 anos, funcionário público e ex-trabalhador da fazenda, confirmou a servidão por dívida em seu depoimento durante a audiência, conforme a Repórter Brasil. “A gente levantava às 4h para fazer comida. Partia às 6h para o serviço e voltava às 6h [da tarde]. Ia a pé até o local de trabalho. Trabalhava de segunda a sábado e às vezes emendava domingo, porque a gente queria ir embora”, descreveu. “No final, para pegar [dinheiro] para ir embora, eles diziam que não tinha saldo.”
O trabalho se dava sob vigilância armada e em péssimas condições de saúde e higiene, afirmou o procurador Garcia Rodrigues. “E, sobretudo, com a condição de servidão por dívida, que por si só já caracteriza trabalho escravo contemporâneo desde o início do século 20, reconhecido assim pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelos países signatários, dentre eles o Brasil.”
Para o procurador, essa ação foi possível graças ao engajamento da sociedade civil na época, como sindicatos de trabalhadores, advogados, ativistas, defensores de direitos humanos e membros da igreja católica. Uma das lideranças mais importantes foi Ricardo Rezende Figueira, então padre da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
O padre e as denúncias
Figueira morava em Conceição do Araguaia (PA) e coordenava a CPT na região, incluindo o local onde estava a fazenda. Aos poucos foi ouvindo denúncias, mas não tinha nada concreto. Até que recebeu, em 1983, um telefonema que o fez agir.
“Recebi um telefonema de São Félix do Araguaia (MT), dizendo que cinco trabalhadores tinham retornado da Volks, andando a pé, pegando carona. Eles tinham sido aliciados no Mato Grosso e levados para a fazenda, onde não podiam sair por causa do sistema de endividamento progressivo e de muita violência”, contou.
Os cinco trabalhadores, sendo dois adolescentes de 17 anos, usaram um pretexto falso para fugir. Disseram que tinham se comprometido a se apresentar para o serviço militar. Com medo da ditadura militar, os gatos os deixaram sair.
Com um dos trabalhadores, Figueira foi até Belém (PA), mas não encontrou o governador Jader Barbalho – que havia ido para Brasília. Voou no mesmo dia para a capital federal, novamente não encontrando o político. Então fez a denúncia à imprensa.
No mesmo ano, uma comitiva de parlamentares e jornalistas foi verificar as denúncias na fazenda, lideradas pelo deputado Expedito Soares (PT). Ele havia sido um funcionário da fábrica da Volkswagen no ABC Paulista.
Fora da fazenda, a comitiva encontrou o gato Abílio Dias, que, segundo Figueira, acabara de capturar um trabalhador. “Ele mostra o trabalhador e fala: ‘Esse trabalhador fugiu, é um vagabundo. Estava me devendo, me deu prejuízo, eu tive que ir atrás dele, tive que pegar e trazer para trabalhar.’ Então ele mostrou o crime sem ter consciência, aparentemente, de que ele estava cometendo um crime.”
Dentro da fazenda houve outro momento marcante. “Um trabalhador falou: ‘Quem é o padre?’ Disse que era eu. Ele me segurou pelo braço, tremendo de febre e disse: ‘Eu estou aqui há nove meses trabalhando, tô doente, tô com febre. Estou com malária, preciso sair, mas não me deixam porque tenho dívida.'”
Segundo os depoimentos, pelo menos dois trabalhadores teriam morrido vítimas de malária na fazenda. Além disso, outros dois bebês teriam perdido a vida no local, todos sem o atendimento médico adequado.
Cúmplice do crime
Em 2020, a Volkswagen assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT e com os ministérios públicos Federal e de São Paulo em outro caso envolvendo a ditadura militar. A empresa se comprometeu a destinar R$ 36,3 milhões a ex-trabalhadores presos, perseguidos ou torturados em São Bernardo do Campo (SP).
Ricardo Rezende Figueira tornou-se professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC). De acordo com o docente, durante as investigações do caso em São Bernardo do Campo, um historiador alemão foi contratado pela Volkswagen para analisar aquela situação.
Embora a investigação se concentrasse no caso paulista, o historiador teria reconhecido indícios de servidão por dívida na Fazenda Volkswagen. Figueira decidiu então procurar o MPT e entregar os documentos que tinha colhido no Pará.
Durante a audiência, o representante da Volkswagen afirmou, segundo a Repórter Brasil, que a empresa não tinha conhecimento sobre o tratamento feito pelos intermediários aos trabalhadores, que seria uma prática comum na época.
Para o professor da UFRJ, a responsabilidade da montadora é inequívoca. “Se você tem um crime na sua casa e sabe, tem que agir. No mínimo, tem que denunciar. Ao permitir que dentro da sua fazenda houvesse trabalho escravo, assassinato e abandono de pessoas, a Volkswagen foi cúmplice do crime.”